Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Entre dentes de leão coloridos

Não consigo deixar de imaginar essa mulher correndo entre luzes que brilham como dentes de leão coloridos. Acontece sempre que vejo alguém tentando justificar seu amor pela vida falando incessantemente sobre si mesmo como se soubesse do que está falando. Eu não sei sobre o que estou falando, não sei se fica claro no meu discurso. E essa mulher é uma dessas imagens que me perseguem. Me perguntava (antes de ontem) se essa mulher não tinha a ver com algo. Porque talvez devesse persegui-la, não sei. 

Ontem eu me concentrei apenas nas luzes, dentes de leão coloridos e iluminados, como queira. Então não pude deixar de pensar que dentro de mim parece haver milhares de vetores partindo dessas pequenas luzes em direções contrárias, embora assim, ou mirem o chão, ou o céu, você sabe, as luzes. Não é exato descrever o gosto de pequenas constantes alegrias juntadas a umas tristezas que não passam. A própria tristeza de imaginar essa mulher correndo entre inúmeras direções, por exemplo, já é uma tristeza macia demais para ser evitada. Por algum motivo, se não a persigo, a vejo ir se cansando de tanto correr em tantas direções contrárias.

Também não sei se ela tem medo das luzes (e por isso corra em direção ao fim do túnel) se isso fosse um túnel, porque é escuro e não há estrelas, mas pequenas luzes como dentes de leão, assim eu disse. Uma coisa em mim se entristece ao vê-la, como se estivesse ela tão cansada, quisesse se sentar, tomar uma coca, não sei. Porque no centro da cidade a proteção do anonimato não a protege enquanto ela devia, mas não se sente só. Como poderia? Com todas essas luzes em direções contrárias ao seu redor.

Eu imagino que ela seja de Patos de Minas, ou de Ituiutaba, ou de Itumbiara, ou de Tupaciguara, e poderia querer descansar às vezes dessas pequenas viagens, sabendo que vai e que volta, sempre em direções contrárias...

... enquanto pensava sobre isso hoje, me perdi, quase não acho retorno na João Naves. Estava eu mesma, indo em direção contrária, à BR. Queria ir ao centro, persegui-la, achava que talvez ela tivesse caído em si, parado de correr, se sentado para tomar uma coca. Porque se muito se corre, muito se cansa e quem espera sempre alcança. Mas eu não podia mais esperar, nem ela me esperaria. Eu pensava isso hoje pela manhã: que tinha que persegui-la.

Mas as horas passam tão rápido e já, primeiro, eu erro o caminho, você sabe, não tenho tanto tempo assim. Não sei direito o que pensar, se vou e volto, eu também, sempre em direções contrárias. Não me admira que ela esteja chorando tanto por esses dias, sei bem como é isso. Quem sabe se não são as luzes que a perseguem, ou ela esteja perseguindo as luzes, e não ao fim do túnel. Se isso fosse um túnel, quem a quem estaria perseguindo?

Eu precisava mesmo de um encontro para saber, como então (?) se ela não me espera. Não. 

Queria que isso fosse uma música, sabe? Cantar me ajuda sempre a gritar mais alto por dentro. Porque talvez, se eu gritasse mais alto, ela ouviria, estivesse onde estivesse, e me esperaria então. Como poderia adivinhar onde, na imensidão de um centro de cidade, ela estaria tomando uma coca? Já comecei errando o caminho, depois o telefone toca, você sabe, eu ando muito ocupada para isso de persegui-la. Também não sou duas, três, sou uma só, ou sou eu mesmo um zilhão de vetores em direções contrárias? 

Agora, às onze, estou um quanto cansada, sabe, de persegui-la. Minhas mãos também tremem um pouco e não tenho fome. Mas ainda a vejo correndo entre essas luzes, como entre dentes de leão iluminados.

Não consigo deixar de pensar no quanto gostaria que isso fosse uma música. Quem sabe? Como eu poderia alcançá-la? Perguntar-lhe de onde estaria vindo e para onde estaria indo aquela mulher de cabelos até os ombros, usando um vestido maltrapilho e tênis para corridas. Correndo. Entre dentes de leão coloridos.



quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Sérgio

Vi um rapaz me olhando. Aqui ninguém me olhara antes. Não sou feia, oras, sou invisível, você sabe. Nessa planície arredondada onde as bússolas não funcionam, eu andava às quatro de quatro tomando banho de lua. Assustei-me. Vi um rapaz me olhando.

Numa manobra memorável, escalei a torre da ctbc e mandei todas as luzes no chão. E primeiro minha cara se fechava toda, como experimentando um azedo amargo. E depois se abria devagar: a boca num mudo grito, os olhos num mudo espanto, as bochechas num imperceptível sorriso. Estava ele lá, ainda me olhando.

Numa manobra inesquecível, arranquei as árvores da Tubal e as plantei todas na Sérgio. Também fui ao zoológico e lhe roubei todos os bichos.  Então, envolta por floresta e nenhum outro pano, cheguei meus olhos à fechadura e estava ele lá, ainda me olhando, disse: trouxe seus chinelos, seu dentifrício e uma manta. Ao que respondi: então. Quer morar comigo?

Ervas


Mira lá na frente, bem depois da cavalgada. O que vê?
Eu? Parada respiratória: dirão da minha morte natural. Vai o corpo. Ficam os equívocos mais a terra jogada por cima.
Mas não sempre espalhou flores?
Não. Sim, sim, ai, ai, esse mato...
(Miro lá na frente: estou de salto e de fantasma, arrancando ervas daninhas).


domingo, 19 de dezembro de 2010

por isso, Por isso




Sim, sou doce.
E que porra você teria a ver com isso?

Sim, prefiro que você prospere às favas onde estiver.
Seja feliz, encontre luzes e caminhos.
Mas que porra eu teria a ver com isso?

Sim, sorrio e faço parte de todos os seres humanos
Mas que merda só você não se dar conta disso
E eu tenha que difamar seu ódio com meu amor explícito

Essas suas horas gastas no meu eterno sorriso
Cheias de escárnio desnecessário e ambíguo
Sim, ou eu perdôo ou nem ligo

Sim, tenho pouco ou nenhum raciocínio
E sim, sua arrogância de merda tem menos que isso

Porque se eu fosse tudo que sou
E você fosse tudo que é
Estaríamos discutindo isso?

Sim, sou antes o que é impreciso
E que porra eu poderia fazer a respeito disso?
Que porra você poderia fazer com isso?

Sim, fui-me embora fazer drama atrás da árvore
Chorei uma pá de noites e dias seguidos
Masquei unha até sangrar-me os dedos
Fiquei oito minutos sem respirar sob o mar
Encasquetei com trocentos vícios
Que merda mesmo é isso?

É por isso mesmo que digo
Sou doce mesmo, há milênios
Vista sob árvores escrevendo
Poemas
E se você pudesse saber como é isso
Eu te escreveria um poema também

Um poema como se você tivesse
Um tanto assim a ver com isso
Um poema que te explicasse melhor 
e se chamasse por isso, Por isso.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cazuza

E se eu procuro e não encontro a explicação? Espero em pé, debaixo de chuva, e duas horas depois o ônibus não passa? Caminho dois dias e duas noites e, ao chegar, igreja não há? Então você, que cataloga o sentimento alheio com a propriedade de quem vive sentimento de fora, me diga o que são essas manchas em minha pele, embaixo das tatuagens invísiveis. Um pouco de espuma na boca, um pouco de grito na garganta, antes assim só sitomas, antes acabem em lágrimas que em morte, você diz. Eu discordo por instantes, aqueles em que penso no alívio. Chego em casa rasgada, com dois pedaços de mim esquecidos numa calçada qualquer, você me pergunta o que foi, eu digo que não foi nada com tristeza íntima. Então cadê seus olhos se esses não enxergam mais nada?

Mudo os móveis de lugar, sentada no sofá, recebo a visita do mesmo beija-flor. Por minutos inteiros ele se prostra em minha frente com seus olhos de pássaro num curioso vôo imóvel. Eu deveria sorrir, sua presença deveria me agradar. Fito-o com meus olhos de gente e coisa que não consigo é sorrir. Dia e outro ele me visita como quem quer me desvendar pelo cheiro, dizer o que sou. Apenas para participar de seu vôo, arregalo meus olhos e o espero que me compreenda. Nunca há nada, um fisgo, uma pinta, um algo que assim o diga: que agora sim, sabe porque volta. E a cada retorno, vai o beija-flor ficando mais distante, menos arregalo os olhos, até sua presença de beleza do dia virar um incômodo. A esperança de que ele soubesse mingua. Ele não sabe, voa apenas, pára pra respirar e fita o vazio, meu cheiro não sente, não sou flor. É para mim o mesmo que o pássaro sobre a penteadeira, sou para ele o mesmo que uma sombra às três. Ainda que voltasse todos os dias, com suas pequenas asas verde-escuro brilhante, não me faria sorrir.

Caro beija-flor, sou agora um fiapo só, não entendo o que você quer dizer, assim, é porque você não me diz nada. No natal do ano passado eu pensei no dissabor das coisas que vão e vem, passam sempre, pensei que o presidente está errado, pensei em mudar de profissão, mas não pensei em você.


Esse desejo não confesso, nossas sete vidas entrelaçadas por exatos sete erros, por tudo que a gente não disse, uns falsários. Num desses botecos de salgado, numa dessas cadeiras que se fecham, a gente se cruza e discute uma centena de coisas quando por dentro, meu silêncio é ainda maior, eu mal me importo, sei que o curso segue, nada se desvia, nada muda de uma hora pra outra. Quando a tristeza explode, eu respiro mais difícil, ainda assim, respiro bem, obrigada. Você gesticula meia dúzia de membros, tem tremeliques, tiques nervosos, uma vida inteira pela frente pra se cansar de si mesmo. 

Eu desejo o silêncio que me corrói por dentro, ai, não ter resolvido todos os impasses, não ter feito tudo que eu podia, toda a falta que fez a tal proatividade. Você me traiu, eu penso, você me deixou, eu choro, você me abandonou, eu digo, você me ensinou que não há como voltar atrás, o tempo não perdoa, bem bem, esquece. 

Eu não esqueci. Então me deixe ser só às 3 da manhã, no sono mais profundo, zoando por entre os mananciais que já me alimentaram quando eu cheguei bem perto do abismo e só não pulei porque tive fome. Deixe-me ser só quando as luzes da cidade me impressionam e esboço o grito que volta no eco do vazio imenso. Deixe-me vestir a armadura grossa de pêlos finos para proteger meu muito efêmero do frio da eternidade falha. Eu penso naquelas manhãs alaranjadas pelas cortinas, você me contava piadas, eu ria chorosa, aquelas noites imensas, a felicidade plena que quis eternizar. Eu penso nas tantas vezes que deixamos de nascer e em todas as vezes em que me esforcei pra te amar menos. 

... E de supetão o beija-flor estatala-se em minhas costas. Só me faltava essa! Um pássaro que me visita mas não me enxerga.


Meu deus, Vinícius!


“Há por aí uma mania de se pedir as coisas mais absurdas a quem se ame. Que o amado ame o amante de volta, de preferência, com igual intensidade e eternamente, por exemplo. Mesmo sabendo que não faz lá tanto sentido assim, há quem nem mesmo peça: exija. Eu mesma devo ter feito isso já uma ou duas vezes, embora tenha muito mais que dois inimigos feitos sob o pseudônimo de amor.” Cassandra.

Preguei essas considerações em cima do retrato de família feliz que devia alimentar meus sonhos femininos (kamon). Daí meu estranhamento com a quantidade absurda de convites casamentosos que recebi nos últimos dias. Vou a todos de bom grado, carregando meus mais sinceros votos de felicidade porque costumo gostar de verdade dos apaixonados graças à minha personalidade rastafári de cabelos pranchados. Fico leve, esotérica, dançarina, maquiada, alta, bêbada, espalhando a felicidade que desejo e imagino para os casais que se fantasiam para subirem em seus altares.

Mas esqueço-me da análise que deveria fazer sobre os vestidos das moças para imaginar que o próprio altar poderia ser o símbolo do ápice da loucura do amor. O que é mais recorrente, no ápice da loucura do amor, é que se case para exigir do outro que a loucura dele nunca mais acabe. A coisa toda não é uma inteira e completa loucura só? Que seja então um pacto, um acordo comum, uma decisão espontânea e racional, (leia a próxima frase em seu tom mais irônico) afinal e teoricamente, nós não estamos em uma sociedade que obrigaria um a ficar com o outro se não houvesse amor, não é mesmo? Mas, se você mal sabe de onde o amor veio, como poderia saber para onde ele está indo? Não há ninguém no mundo que tema o casamento, o que se teme, é claro, é o divórcio.

Não me entenda mal. Não estou aqui dizendo que o amor de todos irá desmoronar como os icebergs do superaquecimento global.  Por trás da orelha esquerda dessa figura fantasmagórica minha, que hora está e hora não está, há uma pulga assoprando dia e noite que, se algo poderia ser eterno nesta vida, seria aquela centelha de amor, uma que explode, incendeia e só se apaga quando o combustível queimou-se todo. Eu recorreria aos poetas para aprender sobre os combustíveis que alimentam o amor, não aos formulários ou às religiões para quem o tema foge muito – quando não completamente – do assunto.

Por isso, à certa altura do campeonato, quando em mim mesma tive que derreter umas tantas geleiras ali no peito formadas por uns tantos divórcios assinados ao vento mesmo, ah, não foi trabalho dos mais fáceis. Se o fiz, o fiz com minha bíblia de uma página só para viver um grande amor do Vinícius debaixo do sobaco. Tive que enfiar a cara até mesmo em seus ovos mexidos para encontrar as entrelinhas que eu precisava. Só depois de umas cinco leituras de estudo é que pude fundar a religião e a igreja na qual, eu e o bem-amado - quando o encontrasse -, nos casaríamos abençoados por Vinícius.

Obviamente, não me detive à questão de gêneros do poema. Eu posso, em qualquer voz que me couber, fazer do meu corpo um estrado onde enclausuro meu ser amado e me posto de fora com um espado. Chamo isso de licença poética, uma das virtudes pregadas pela minha religião que, naturalmente usa da própria licença poética para chamar-se de religião posto que só eu creio nessas coisas. Porque estou sempre disposta a me postar de fora do meu corpo com um espado para proteger meu bem amado de seu lado errado. E espado, pode ser definido como uma disposição constante de ouvir e entender a quem eu amo.

Todo mundo tem seu lado errado, sua sombra. Não foi Jung quem disse isso?

Que não há fantasmas no poema, isso já se sabe, o que já vai deixando de ser claro é sobre o que eu estaria falando, já que, na minha ou nas outras religiões, “tudo isso adianta pouco, se neste pântano obscuro e louco não se souber achar o bem-esposo — para viver um grande amor.”

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Em Vauxhall nunca para de ventar




Eu gosto do contorno das palavras, dos desenhos que criam, das histórias que contam. E a interpretação de todas elas é sempre uma coisa tão solitária, tão dependente de tudo que já fui um dia. As histórias diferentes que contamos lendo as mesmas frases, nossa própria arte. O tom de voz, a cor da pele, tudo não passa de um grande jogo de espelhos. Jogo essas coisas confusas aqui: interprete você. As ideias que andavam corridas, escondidas, sumidas, o caos da minha memória confusa, tudo serve, me acalma.

***

Estou sempre em meio àquela ventania da Vauxhall, sempre estou ali, querendo pegar o ônibus errado. Eu dizia que aquele era um lugar mágico - que é ser assombrado ao contrário - e quando eu digo que é mágico, mágico fica sendo na minha memória: em Vauxhal nunca para de ventar.

Não é preciso que eu conte isto aos outros: que não acho que minha vida é outra coisa senão uma história. Os outros desconfiam que eu seja assim, uma pessoa avoada, perdida na pintura diária da sua vida. Mas não deixei de acreditar no que os outros dizem, apenas nunca estou olhando para eles.

As frases de sempre enfeitando conversas amenas, me sento numa cadeira tão frágil, tão frágil, de boteco, branca, de metal. O velho nos serve cerveja, comenta que nunca viu uma mulher beber caipirinha com tanta desenvoltura. O velho é tão frágil, tão frágil. São essas as finas estruturas que criamos para desenhar as cidades: a rua de asfalto ruim e esburacado, os postes ostentando seus pesados e sujos fios, os meio-fios quebrados das calçadas cobertas de mesas dobráveis, tão frágeis, tão frágeis. Bastaria um pé de vento, eu acho, tudo iria pelos ares.

A música ruim começa a tocar e qualquer silêncio é impossível. Algumas mulheres me parecem hienas enfeitadas. Qualquer silêncio parece impossível mas um pé de vento seria o bastante. A criança que tropeça e arranha os joelhos dá-se conta de sua fragilidade. Chora alto porque sabe que um pé de vento seria o bastante. As hienas seguem irrepreensíveis sem nunca perceber o quão ridículas são suas pequenas superioridades. Não importa com que pedaço de pano se cubram, há sempre esse cheiro de gente nova repetindo ideia velha. O mofo, o embolorado. As vozes ricocheteiam entre chão e teto, sobre o teto, escuras nuvens se trombam, troveja. Torço o pescoço para ver um pequeno redemoinho se formar. Um pé de vento seria o bastante.

Cada vez que mudei de ideia, não sei, desconfiei da seguinte. E não é tão frágil este momento de agora se daqui a pouco for pura incoerência? Um pé de vento não seria o bastante?

Um cachorro se põe a latir bem sério porque o vento lhe canta aos ouvidos como um uivar. O vento é como um convidado que chega aos poucos, cada vez mais gordo, pode engolir tudo, você sabe. Com a cara ferida e arranhada pelo dançar do ar em seus lisos cabelos, as hienas se assustam, se escondem nos banheiros. O velho desliga a música, recolhe o toldo, mas o redemoinho se afasta mais gordo e vai engolir apenas uns eucaliptos distantes. Que pena! Um pé de vento seria o bastante.

A música ruim então volta a tocar, os vasos sanitários regurgitam hienas ainda mais maquiadas, qualquer silêncio parece impossível, uma criança chora alto, ela sabe: um pé de vento seria o bastante e em Vauxhall nunca para de ventar.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Cassandra! Você precisa sair!

De longe, vejo uma multidão. Por isso me aproximo. Afasto um com os ombros, outro com as mãos, a uns poucos, peço licença. Não há fila no caixa improvisado, olho pela fresta escura, compro meia dúzia de papéis, troco por uma cerveja que a menina de cabelos bem compridos retira do gelo enquanto reclama dos dedos mortos.

Arrebento (e jogo fora) um longo fio de cabelo antes enroscado no lacre da lata, bebo.

Dirijo-me até o centro da multidão, abro os dois braços, os levanto até a altura dos meus ombros. Rodopio. Meu espaço foi aberto. Começo a costurar meu universo paralelo em espiral. Sorrio. Troco mais papel por cerveja. Sinto que poderia dançar, nua, se fosse possível, bato meu pé direito, repetidamente, e só meu lado direito dança. Gosto sinceramente desta música. Está mais leve que de costume, essa que não é Cassandra. Vou acompanhá-la e dançar inteira. Desde que haja tambores. Dançarei.

Meu amigo se aproxima, se não quiser me consertar, pode. Não estou estragada, estou dançando. Pega na minha mão, a levanta, eu abaixo minha cabeça, me entorto toda, grito: Estou excessiva? Acho que não, ele diz. Acho que posso fazer um passo. Você me joga para cima e me passa por debaixo das pernas. Ele diz que não conseguiria me segurar. Estou gorda? O que? Estou gorda porque ando bebendo de segunda a segunda. Já reparou que: a total falta de sentido da vida faz todo sentido quando estamos bêbados? Ele não ri. Entendeu, mas não achou engraçado. Meu telefone toca. Olha, minha amiga está jogando sinuca, quer ir?

Três das pessoas constantes neste carro são completamente desconhecidas e levemente desagradáveis. O moço no banco do passageiro é grosseiro, infantil, asqueroso.

As minhas bolas são pares. Devo derrubá-las. Derrubo-as. Tenho sorte de principiante, dizem. Derrubo muitas. Faço cálculos mentais, força, velocidade, ângulo. Me julgo boa nisso. Sorrio. Mas já não sorrio mais como antes. Estou cansada. Nesse tipo de espelunca nunca se tem o que comer. Olho o cenário todo: se tiro os elementos humanos, fica tudo menos denso. O caldo, o calor, o suor.

Alguém se aproxima. Me saio bem. Ganho mais um amigo leitor de Herman Hess. Nunca li Herman Hess. Achei um pouco indigno do Alfredo terminar comigo antes que eu terminasse com ele. Eu rondo essas espeluncas porque de certa forma sou invisível aqui. Dizer para eu não procurar, não ligar. É dizer para eu ser invisível. Eu sou.
Ai meu deus, estou conversando com a geladeira. Um passo a frente para sentir a brisa da madrugada. Não foi dessa vez que consegui passar a noite sem pensar nele. É só esse o peso de toda noite divertida em vão.

Cidade de caramujos

Você tenta fazer sua doçura caber
Não cabe.
As pessoas estão amargas na sala
As coisas amargas ditas
Misturadas às suas coisas doces
Um molho cansativo
Uma vida incomodada
Você se retira sem dizer
Convoca apenas as crianças
Porque sabe de uma cidade de caramujos
Bem embaixo do limoeiro
Fugindo lentos para lugar nenhum
Enquanto uma haste fina os cutuca e
Uma ou outra música de amor toca
No riso fácil dos que ainda se impressionam com
Uma cidade inteira de caramujos feita sobre um galho seco!
De tão pesada, desmoronou seu próprio terreiro
Sobre a folhagem espessa dos copos de leite
A nuvem de caramujos vai se dispersando de seu lar muito cheio
Enquanto a criança os cutuca para que se escondam
E tem a melhor idéia de arremessar-lhes um gordo limão
Você diz, então escolha um limão pequeno
Pelo que a má pontaria protegerá os caramujos do esmagamento
E o sol vai se pondo, o chão úmido ficando frio
A suposta gripe malvada os convida a ir para dentro
E você se tornou também um caramujo atravessando o lento da sala
De tão cutucado, vai se escondendo em sua casca-casa
Bendizendo o daqui a pouco calmo, sua doçura farta
Nossa sala, nosso apartamento.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Vago plano para não mudar de vida

Sei que não neva em Uberlândia. Mas eu sinto o gelado desses dias. Se me viro praqui ou prali, tanto faz. E de vez em quando eu ando debaixo de chuva mesmo. Tem gente que me vê, para o carro, me segue, grita meu nome, oferece carona. Eu não ouço. Ignoro, sem querer, porque não ouço. Sei depois, porque me contam compreensivos, acostumados com minha loucura. Eu não iria querer carona de qualquer maneira. Continuo sentindo a chuva, o arrepio. É só usar uma bolsa de plástico.

As constantes ofertas de ajuda.São risíveis. Pelo menos para mim. Me salvam da chuva, dos vícios, dessa terrível conduta distraída. Não me beneficio de nada disso. Eu vou perdoando os defeitos dos outros até me dar conta de que posso me retirar do recinto quando bem entender. Saio de fininho e finjo que nunca estive ali. Como se fosse um personagem ausente da minha própria história, esperando que Alfredo volte com a minha com a minha crença em qualquer coisa. Não acredito que vá acontecer. De fato, não tenho notícias.

As pessoas se aproximam de mim para dizer as coisas mais absurdas, que fulano disse isso e aquilo de mim. Guerras inteiras em nome dos egos mais medíocres. Eu não defendo o meu: dou vexames históricos em festas chatíssimas. Faço a minha parte. Não sou menos ridícula do que ninguém, deixo sempre claro. Mas tudo vai ficando inóspito, como se eu fosse a própria aberração.

Aqui, é como se toda a minha tristeza tivesse sido extraída da alegria que eu tinha de me sentar de pernas abertas, não usar sutiã e abraçar meus melhores amigos. Tudo foi chamado de erro: meu sorriso expansivo, meu gosto por danças engraçadinhas, minhas sinceridades súbitas, minhas tempestades de choros intermináveis. Não sinto que possa contestar por agora. Mas eu tenho um plano vago de usar roupas indecentes por mais um tempo ainda. E ver no que dá.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A coisa que eu tenho

Muitas vezes me sento diante do computador e, olhando a tela vazia, sinto um esfriar no estômago, um sobressalto: pronto, perdi. Perdi a coisa que eu tinha. Perdi porque não dei atenção, não alimentei, deixei morrer à míngua. Fiz de propósito. Matei porque quis mesmo, matei de propósito.

Mas aí quem morre sou eu.

A coisa que eu tinha era assim de me armar para escrever e sentir o entusiasmo de ter chegado à única verdadeira festa que existe: a festa com os deuses: os únicos deuses que existem: os que criam universos.

Sentam-se ao meu lado e começa a bebedeira que, sem ressaca, deixa marcas nas costas, nos dedos, na alma. Eu sempre começo a brincadeira dizendo: há um carro amarelo à porta de casa. Do que os deuses riem muito. O próximo deus a falar, sugere o que fazer com o carro.

Mas aí eu sumo. Não sei. Não quero mais. Cansei. Preciso de um tempo. Que pena (!) ou não, os deuses não saem do meu peito e eu preciso deixar de alimentá-los porque quero que morram.


Nunca morrem. Comem um embasbaco meu vendo o pôr-do-sol, um sorriso meu vendo uma criança se enrolar no iô-iô, uma compaixão sufocante vendo o erro do que erra e não vê. Eles sabem se alimentar de mim, às vezes emburram, eu muito me assusto, eles voltam.


Talvez daí, venham meus acessos de solidão induzida. Talvez. Porque dois ou três deuses no peito, meus caros, me fazem a companhia dum mundo inteiro.


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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rúbia, minha porca borboleta

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__ Não suporto essa gente. Aquilo nunca leu um livro, acha que é intelectual porque é sujo. Já viu como tem a pele sebosa? Que nojo! Sabe? Outro dia, chegou encostando em mim! Me deu ânsia. Você acredita? Nem. Será que ele acha que eu estou super afim? Nem. Faz meu tipo não. Dá uma preguiça desse povo sentado embaixo de árvore, recitando cânticos, sabe? Isso me intriga: quem sustenta a maconha desses desocupado? E essas festa escura? Gente uivando pra fogueira, o que é aquilo? Me explica? Chega a me dar arrepios. Uma vez ou outra, vá lá, mas toda semana? O que tem de gente sem o que fazer no mundo, vou te contar, viu(?) Mas quando tudo está pior, o pior acontece: começam a espancar aleatoriamente meia dúzia de instrumentos e chamam de “música”. Que porra foi aquela da última vez que você me convenceu a vir num troço desses? Do nada, eis que surge um cara com máscara de porco, e outro, e mais outro, e um outro que começa a grunhir, literalmente, no microfone. Ai Cassandra, espeto de gato? Que nojo. Não sei como você come isso. Alías, não sei o que você vê nisso. Se ainda tivesse um broto pra paquerar, você precisa esquecer esse Alfredo. Você tem uns gostos tão estranhos, Cassandra. Sabe quem te achou linda? O Dudu. Te convidou pra ir da próxima vez com a gente para o rancho. E ele é Dudu caralho mesmo, viu engraçadinha? O rancho dele tem lancha, Jet Ski, a gente passa o dia todo na beira da piscina. Uma delícia. Olha aquele sujeito ali com aquele cabelo imundo! Pra fazer aqueles rolinhos ele passou oito anos sem tomar banho. Crédo. Nem. Não quero mais cerveja não. Náuseas. Sempre me pergunto: cadê a família dessas crianças? Porque é tudo filhinho de mamãe e papai, você sabe né? Criado a leite com pêra metido a revoltado. Sabe o que falta? Uma boa bacia de roupa suja para lavar. Gente! Vinho se toma no inverno. Regra básica. Nessa porra de calor, vão servir vinho? Brasileiro é povinho mesmo, cai dois graus no termômetro e sai neguinho de cachecol e luva. A cerveja acabou? Como assim? A organização de festa desse povo é assim: oh, quinta, tipo, sei lá, umas, xô ver, âhn, é, umas oito. O que fumou menos, contesta: oito não pode, tem que ser depois das dez e meia. Se não (?) nem isso! Ninguém se lembra de comprar a cerveja, arrumar uma banda decente pra tocar. Merda, Cassandra, enfiei o pé na lama. Me ajuda aqui. Olha isso, nem, perdi, minha sandália. Deixar de molho? É bom? Sei não, viu. Ah. Conheço aquela menina descalça ali. Gente boa. Você olha assim e pensa que ela é malucaassa e não sei que, mas ela é suuper de boa. Estudiosa, inteligente, fala francês, gosta de jazz. Se ela caga cheiroso? Não, tô falando sério, ela é gente boa mesmo, atriz, tá certo que eu não entendo muito bem as peças de teatro dela, mas já fui assistir a duas... e, por falar nisso, o que quer dizer o nome dessa banda? Borboletas sujas? Pau de bosta? Sério? Ainda bem que mudaram, né. Céus.Tenho certeza que nenhum desses meninos tem mãe. Não é possível. Gente. Meu cabelo está fedendo a fumaça. Não. Está fedendo a diferentes fumaças. Parece que essa fumaça entra na alma da gente e mesmo depois de lavar, não sai do cabelo. Olha isso. Não. Olha isso. Quantos anos essa menina tem? Doze? Criou peitinhos, mete um colar de côco, um cigarrão na boca e se acha. Se. Acha. Tenho um nojo de cigarro, sabe, não suporto. Mas. Gente. Está estampado em todos os anúncios: faz mal à saúde e as pessoas, num ato de estupidez sobrenatural , fumam. Agora. Me explica. Não querem morrer? Chegam baforando fumaça na cara da gente, empurrando, como se fossem superiores. Educação. O que falta neste país é educação. Se bem que, é a pobreza de espírito que me desagrada. As pessoas precisam aprender a conviver melhor umas com as outras, a respeitar o espaço do outro, sabe?



__ Quê? Rubinha, desculpa, não te ouvi. O que você estava falando? Da menina lá, que caga cheiroso? Rubinha, meu amor, vamos parar de subtrair e começar a acrescentar? Quer um gole? Relaxa, dor de barriga é ótimo para limpar as toxinas do organismo. Bóra pra frente ouvir um barulho? Vai começar o show. Ainda bem. Meu ouvido não é pinico.



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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nina tem sete anos (um conto no meio do dia)

As janelas estão abertas. Nina sente o cheiro: é chuva. Ela arregala os olhos, deixa a boca abrir num som oco, depois, dá meio sorriso: vai chover. Nina mal pode acreditar.



Arrasta-se atrás do sofá aonde sua mãe (por agora) se esquece (por querer) da vida. Alcança a janela e a fecha, para depois, na ponta dos pés enfiar o nariz nos entremeios que espirram água da chuva. Aperta os lábios enquanto cisma consigo que ninguém - em parte alguma - da galáxia - poderia sentir mais amor pela chuva do que ela. Cheira a chuva. Suspira. Então, rola como um tatu-bola invisível num movimento calculado de instante para emergir como uma sereia bem no rumo dos olhos de sua mãe que deverá responder à pergunta: “Me deixa brincar lá embaixo?”



Nina notou que, nas últimas dez vezes que choveu, sua mãe renovou a promessa de deixá-la brincar lá na chuva adiando-a para uma próxima vez com a maior cara de pau. Sabe disso porque tem escrito em seu diário diariamente, como houvera prometido à tia Alícia logo depois de desembrulhar o caderninho rosa no dia de seu aniversário de sete. Nina acha importante honrar suas promessas. Ontem, antes de dormir, tinha contado em voz alta as negativas da mãe ao seu pedido de brincar na chuva. Marcava os dias amputados da diversão que mais amava, desenhando uma estrela verde no canto superior da folha e amargando as promessas quebradas da mãe.



Ontem, como passasse o dia todo num ameaçar de chuva constante, Nina resolvera contabilizar as estrelas antes de começar a narrativa do diário. Ao invés de ressentir-se da mãe, entretanto, ela surpreendeu as páginas perfumadas do caderninho preenchendo-as com um plano para fazer com que sua mãe compreendesse urgentemente seu amor pela chuva e a acompanhasse num passeio molhado.



Por isso agora, enquanto a chuva caía, ela sabia exatamente o que fazer. Primeiro, teria que adiantar-se à resposta da mãe a sua primeira pergunta. Nina, antes do não mais provável, emendaria outra pergunta: “Para que serve a chuva se não podemos nos molhar?” Depois recitaria quatro poesias que ela escrevera julgando-se insone às vinte e três horas da noite anterior. Todas declamando seu amor à chuva. E ainda sem deixar-se interromper pelas respostas nada criativas da mãe, apelaria finalmente para o tom espremido do “por favor minha coleção de pingos de chuva está toda seca, mamãe!” típico das negociações infantis.



A mãe impeliu-se a desviar os olhos até a janela para lamentar, sem mover os lábios, suas horas escassas de descanso enquanto ia sentindo o barulho da chuva enfiar-se em seu corpo orelha adentro. Perguntou-se sobre essa agora de colecionar pingos de chuva, mas não quis tentar investigar e ser interrompida por outro poema. Temeu a gripe, a febre, a pneumonia, os vermes de enxurrada e sua velhice solitária que aparecia um pouco antes na televisão. Mas, desejou fazer Nina feliz quando mirou sua cara carente de alguns dentes. Era uma menina diferente sua Nina: colecionava pingos de chuva, fazia sempre a delicadeza de tentar lhe entender os motivos e interessava-se mais por fenômenos da natureza do que por brinquedos. Quis fazer Nina feliz.



Passaram bem perto de mim porque eu me escondia da chuva sob uma marquise perto do bar Verde e elas desciam a rua da UFU até a sorveteria colorida mais próxima. Andavam mãe e filha de mãos dadas. A outra mão de Nina ocupava-se em carregar um pote de vidro cheio de pingos de chuva para sua coleção. Sua mãe ainda se incomodava um pouco com as gotas que pendiam sem cair da sobrancelha, mas deixava a chuva lavar suas preocupações quando segurava firme a mãozinha de Nina. Sem compreender direito o porquê, a mãe sabia que tudo ficaria bem se Nina estivesse por perto. Era uma menina diferente essa sua: passeava sob a chuva enquanto o resto do mundo ou corria ou se escondia. Quis fazer Nina feliz. Perguntou a ela, antes de atravessar a João Naves: "E aquela moça feito dois de paus embaixo daquela marquise? Será que ela é de açúcar?". Riram largo, ensopadas. Nina estava muito feliz, tanto, que temia ser impossível descrever aquela tarde em seu diário.


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Lascívia

O que penso ao chegar à festa: Não é que eu não goste daqui. Gostaria menos de estar em casa, eis que só o incômodo me acompanha.


Nada disso é por acaso, eu acho. Quando ouço Bob Marley dizer pra eu me levantar e lutar, me pergunto se já fizeram o bastante por mim para que eu possa, portanto, continuar sentada nessa cadeira dobrável contando as horas em anos até tudo isso passar. Assim, como quem pegou o bonde andando, eu vejo os assuntos de adultos não fazerem parte de mim. Não posso pensar como eles porque não tenho medo do futuro nem grandes planos.


Enquanto uma amiga me conta entrecortando considerações parciais acerca da moral da menina que dormiu com seu marido – agora ex – vou me lembrando das vezes em que me encontrei com a tal tipa a quem minha amiga se refere como filha da puta.


A primeira delas foi numa festa cheia de gente da cara ruim. Apresentaram-nos, ela foi simpática (até demais) e eu pedi sorrindo pra ver de perto a tatuagem infantil que ela tinha nas costas da mão. Por causa de sua voz anasalada e chata, confundi antipatia com intolerância, mas sua característica mais evidente não passaria desapercebida a quem a conhecesse: a lascívia. Podia essa palavra ser seu nome se o pobre coitado de seu pai lhe adivinhasse as loucuras antes de tê-la cultivado no mundo. O sentido de dicionário me é impreciso, para mim, vale a imagem de uma mulher de sutiã, calcinha, robe, divã, piteira, à espera. Lascívia é uma mulher que morre de preguiça de viver se veio ao mundo para trepar, oras.


Por mais que tivesse nojo da cara da tipa, que parecia sempre um pouco suja por preguiça e me remetia a esta palavra: “lascívia”, fato é que me admiram essas silhuetas femininas que deixam escapar o escorpiano entre as partes, enquanto nós, de reputação ilibada, andamos por aí com cara de re-putação a-libida, se é que você me entende. Um pouco porque não ligo para esses homens da roda que, tomara, não sejam o rascunho das próximas gerações. E, se não ligo, certa vez, fui capaz de assistir bem humorada à tipa deixar seu queixo cair enquanto meu namorado – hoje ex e um pouco gordo – se aproximava da roda. Ele era bonito.


Permiti que ela me cutucasse e atribuísse ligeira qualquer adjetivo lisonjeiro àquele que me acompanhava, só para explicar de pronto, seu súbito engasgar. Nada do que dissesse, entretanto, poderia isentá-la de seu explícito desejo profano de atirar-se nos braços dele, meu então namorado. Um pouco me divertiu. Não me admiraria que ele chafurdasse de bom grado no divã de Lascívia sentindo-se mais estimulado por agradá-la muito mais que a mim, que achava um pouco desagradável beijá-lo sóbria.


Minha amiga estranhava muito que o discurso um tanto sensível da tipa não condissesse com seu comportamento de filha da puta.


Oras – eu pensava sem deixar-me ouvir – teria sido mais óbvio se ela não tivesse se recusado a crer no que de animalesco escapava das lascívias pupilas da boa bisca: um impulso primitivo dominava a sujeita, que depois carregava sua carcaça ainda faminta pela cidade, como se precisasse antes do colo e conforto de suas vítimas, como se precisasse ela mesma crer que tinha sentimentos, para só depois se alimentar da confiança dos outros. Mas nada nela é tão falso assim se o resto das coisas também for falso. Ou vai me dizer que um relacionamento que se desfaz nesses termos foi legítimo enquanto assinado e benzido em cerimônia?


Ficava eu com dó de Lascívia pensando no que seria a solidão absoluta: foder muito, mas não conseguir amar nunca. É o que dizem por aí. Não que eu quisesse que ela se curasse dessa doença quem sabe inventada pelos românticos. Ficava eu com dó porque nem minha amiga, nem eu, nem Lascívia sabíamos exatamente o que estávamos fazendo cada vez que juramos amor eterno por conta duns orgasmos múltiplos.


Eu olhava a meia dúzia de casais que trocaram seus pares como numa quadrilha enquanto se divertiam sempre nessas mesmas festas dos últimos anos. Algumas pessoas haviam se proclamado casadas cerca de seis vezes e poucas delas tinham mais de trinta. Achava normal. Achava que éramos moléculas em ebulição presas numa panela. Eu mesma só não era vista me mexendo tanto porque me sentia cozida e sem sal.

sábado, 20 de novembro de 2010

Anos-luz de tempo perdido


Num futuro próximo –  dia 19 de setembro de 2011 – eu finalmente cumpriria minha promessa de só pisar em Paris com um grande amor fotógrafo ao meu lado. Depois de ter diversas vezes passado na porta da França e me recusado a entrar no país alegando fobia a franceses, eu finalmente poderia revelar O Grande Segredo para as lentes de meu amado. No topo da Eiffel eu diria: recusei-me a vir à França antes porque esperava por você, meu grande amor fotógrafo que me acompanharia até aqui.


Tiraríamos a foto, eu sentiria fome, iríamos comer queijo com café e depois nos empolgaríamos com a próxima atração, o museu de Louvre.


Enquanto nos aproximássemos da pirâmide de vidro, estranharíamos que na praça seca que a cerca houvessem sido erguidas gigantescas caixas de som. Coincidentemente, chegaríamos pontuais, bem na hora em que elas seriam ligadas.


A coisa toda teria sido montada por artistas neuróticos em protesto à indústria da fofoca que, segundo eles, era a principal responsável pela morte da criatividade humana. Quando as caixas fossem ligadas, vozes de bilhares de pessoas comentariam, em diferentes línguas, a vida de Angelina Jolie. Falariam sobre um boato lançado pelos próprios artistas neuróticos de que Angelina Jolie seria, na verdade, O Vingador e, Brad Pitt, o Mestre dos Magos.


De repente, o som cessaria e um texto seria projetado pelas próprias paredes do Louvre dizendo que, se todos os comentários feitos especificamente para aquela fofoca pudessem ser escritos e impressos, o tempo gasto por uma pessoa adulta para ler o texto resultante poderia ser medido em anos-luz.


Então religariam o som, e eu ouviria nitidamente minha voz em português dizer: eu sempre achei o Brad parecido com o Mestre dos Magos. Teria dito isso no Barolo Point?


A essa altura eu estaria bem desconfiada de que aquilo tudo não passasse de um sonho.


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