Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Como uma xícara de chá


Depois dele, a felicidade tornou-se uma coisa simples, como uma xícara de chá, é ele estar por perto, no quarto ao lado, enfiado nos meus peitos, lutando docemente para me colocar nos eixos com coisinhas delicadas como um almoço gostoso ou um documentário na cama. A ideia que eu tinha antes sobre o amor era muito menos enfeitada, eu achava que a qualquer momento, um ou outro acabaria enjoando de tudo e como nunca daria para adivinhar quem enjoaria primeiro, eu sempre me preparava para o pior. Então o pior veio e passou como veio, rápido, intransigente, doloroso, a gente se separou, foram umas horas, acho, um dia talvez, o dia em que eu soube que não era, nem de longe, mais a mesma, o dia em que eu soube que boa parte de mim como eu me conhecia antes estava morta e enterrada. Agora eu sou uma coisa feita de duas pessoas, a que eu sou e a que ele é enquanto me ensina a ser. 

Eu não saberia definir exatamente o que essa coisa é, a história de nossos vícios está entrelaçada, nossa co-dependência depende da saliva que bebemos pela manhã como elixir de uma vida eterna. Os poetas que sabem da magnitude desse vício, desse elixir, também sabem que não há vida eterna e também sabem que o tempo se distorce nessas horas, como pela manhã, quando bebemos salivas sonhadoras um do outro e o eterno tanto parece existir que existe. Os poetas que sabem disso deixaram de discutir a questão depois de Vinícius: é eterno enquanto dura e pronto. Mas e o paradigma do ‘posto que é chama’ (?) e a razão enfiando-se na poesia para deixá-la aos pedaços (?) e a contradição do ‘para sempre’ face ao eterno? 

Eu não sei. Cada um inventa suas próprias regras para o amor, mas, posto que é chama, há que haver algo que o alimente. Mesmo o sol, quando se pensa sobre ele, não se pensa que durará eternamente, embora dure o para sempre de uma vida, um dia, o combustível do sol vai acabar, um dia, o combustível do meu corpo vai acabar e o combustível do amor? 

Eu não sei. Não sei do que o amor de todo mundo se alimenta, cada um inventa suas próprias regras para o amor, há os que consomem a si mesmos em nome do amor, há os que preferem consumir o outro, há de tudo, o meu amor consome as delicadezas da presença dele e acho que enquanto elas forem tão intensas quanto as labaredas que levantam (posto que é chama) a felicidade vai continuar a ser uma coisa simples, como uma xícara de chá (que dura para sempre). Fumegante.

domingo, 4 de setembro de 2011

Sobre máquinas e humanos

Entāo eu assisto a um documentário da BBC sobre o desenvolvimento das pesquisas sobre a formaçāo do pensamento em nosso cérebro e, a certa altura, mostram um experimento que provava que crianças expostas a comportamentos agressivos (assistiam a um adulto chutando um inflável Joāo Bobo)claramente se tornavam agressivas imitando a agressividade com os memos gestos, mesmo quando a imagem era apenas veiculada na televisāo.

O comentário feito pelo narrator do documentário a respeito do fato foi que a influência da televisāo sobre nosso comportamento é um assunto polêmico. Oh really BBC?

O documentário mostra uma sėrie de experimentos bizarros que se utilizam de uns pobres seres humanos que caíram na māo dos ambiciosos psiquiatras - essa palavra "ambicioso" ė usada várias vezes para descrever os psiquiatras desumanos que testam suas teorias egocêntricas submetendo bebês e mulheres a situações de mais puro sofrimento.

No final do documentário o tal narrador - um psiquiatra, of course, credibilidade ė importante - diz que jamais colocaria suas filhas na situaçāo das cobaias apresentadas no documentário, mas era profundamente grato aos tais ambiciosos psiquiatras por suas incríveis contribuições ao ramo da psiquiatria.

Grandes contribuições: contato físico ė importante, eletrochoque nāo apaga um amor da memória, eletrochoque nāo faz um homossexual virar hėtero.

O documentário, para mim, deixou claro que a psiquiatria ainda sabe pouquíssimo sobre o funcionamento do cèrebro e as doenças relacionadas a ele. As grandes contribuições para as pesquisas nessa área estāo vindo da tecnologia. Uma máquina, por exemplo, provou cientificamente que o grau de empatia do narrador psiquiatra era menor do que de um ser humano normal, uma coisa que meu sexto sentido de Cassandra intuiu logo no começo do documentário.




sábado, 3 de setembro de 2011

Cassandra

Ando lendo, consumindo, comendo vorazmente: mitologias. E não é que descubro que Cassandra é um nomezinho saído da mitologia grega? (Para mim, tinha saído do sopro das indecentes musas que me acompanham).

Conto o mito: Cassandra era uma moça gata que tinha o dom da profecia, muito amiga de Apolo que, um dia, de bobeira, diante da esplêndida beleza da amiga Cassandrinha, quis comê-la. Como Cassandra se recusou a dormir com o maromba do Apolo, foi por ele amaldiçoada a não conseguir convencer ninguém daquilo que previa, ou seja, perdeu o dom da persuasão. A pobre Cassandra previu a guerra de Tróia, mas ninguém deu ouvidos à ideia maluca dela de que o Cavalo estava cheio de destruição. E houve a guerra, nela, Cassandrinha foi estuprada, depois previu sua própria morte e a morte do estuprador. E segundo este site, ela lamentou:

"Aiii... as dores que sinto" As terríveis dores do parto da verdadeira profecia. Elas me tomam, me confundem. E outra vez recomeçam. Acrediteis ou não no que vos digo. Pouco importa! Por que com isso me inquietaria? O que há de ser, será e, em breve, quando estiverdes aqui, cheios de pena, direis: As profecias de Cassandra eram a mais pura verdade". 

Bom, como procurei o mito pela internet mesmo, existem diversas versões para a história, mas o cerne do mito é o mesmo: se você é mulher, gata e tem o dom da profecia, é mais fácil que te estuprem e te ferrem do que te dêem ouvidos. Coincidentemente, há uns dias, eu, Cassandra, havia escrito isto:

"Não é que eu me considere pouco persuasiva, o que acontece é que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar, naquilo que as façam sentir-se melhores e, se apanham uma maçã na árvore da serpente, me parece quase impossível dissuadi-las de concretizar a mordida. Vi minhas profecias  se concretizarem umas tantas vezes e me lembro daquelas discussões acaloradas em que minha humilde razão se calava e pedia outra cerveja para eu mesma entorpecer a sensação mediúnica de prever um futuro óbvio e ruim para alguém com quem eu me importava."

Asseguro que nada sabia sobre o mito quando engendrei esse parágrafo, mas, veja como veio a calhar! Isso! depois de ter passado três dias trabalhando num texto profundo para ajudar uma amiga, um texto que não podia ser qualquer texto, devia ter seus melindres persuasivos, ou todo o meu trabalho terminaria por ser em vão. Escrevi, reescrevi, apaguei, reformei, mudei a linha, li um livro inteiro que julguei talvez pudesse me ajudar com a, digamos, "linha editorial" e... resolvi abortar o texto todo. Estou grávida dele, mas, ah, essa persuasão que me falta! Ah as terríveis dores do parto da verdadeira profecia! Ah, essa coisa de ser Cassandra...

Qualquer um que se dedique a enxergar profundamente a vida terá o dom de fazer profecias, ora, a natureza funciona em ciclos.

Me admira muito, por exemplo, que, embora todos os meses de agosto sejam cruelmente secos e brilhantes, inundados de um branco sol a tostar a cidade como se quisesse lhe arrancar toda e qualquer umidade antes da primavera, ainda assim, ouço a população indignar-se com o fenômeno como se o estivesse vivendo pela primeira vez. Obviamente, a cada ano, sutilmente percebemos a secura ir nos tomando de um incômodo terrível por causa de nossa própria incapacidade de viver pacificamente com a natureza, como nos preparamos para o mês de agosto? plantando árvores ou vendendo carros e umidificadores de ar? Podemos ou não prever um futuro esturricado para as próximas gerações? Bom, ainda bem que inventamos os umidificadores de ar. Ainda bem?

Esses exercícios têm me mostrado que a persuasão nada mais é do que dizer qualquer coisa que o interlocutor queira ouvir: veja só! tenho um remédio milagroso e rápido que curará todos os seus problemas! veja como é rápido, fácil e eficiente! veja como é fácil resolver toda a sua vida com uma nota de 100 reais e uma farmácia! Ou uma igreja, ou um patuá... o importante é que seja instantâneo porque nos comportamos como pessoas que todos os anos vivem o mês de agosto pela primeira vez. Nos esquecemos que vivemos dentro da natureza, dentro de um ciclo. E não é que deviam de fato dar ouvido às Cassandras, o que se devia escutar era a voz da natureza, inclusive a voz da natureza humana.