Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Amy e os ratos


Um dia ele chegou em casa com uma caixa de vidro nas mãos. Uma lagartixa. Eu havia me enfiado sob as cobertas por causa do frio e tomado dois comprimidos que me curariam a dor de cabeça com um desmaio. Faltava pouco para meus olhos se cerrarem no conforto da ausência de tudo, inclusive da lagartixa, por isso só fiz a pergunta de praxe: uma lagartixa? Eu precisava de um bicho de estimação, não era uma lagartixa, era um dragão barbudo. Interessante, eu disse, meus olhos mal se suportavam e o resto de semana beiraria o insuportável, deixei-me sumir no sono.

No dia seguinte acordei tarde, no meio da manhã, no quarto estávamos o dragão barbudo e eu em meio à vida revirada. Antes de tudo sentei-me em frente à caixa de vidro e enxerguei em reflexo as olheiras roxas que me adornavam, mas o bicho mesmo não me via. Era como se ele tivesse uma personalidade definida e fosse, a qualquer instante, falar enquanto olhava para o outro lado, para o reflexo branco do sol frio na janela: também não entendo porque estou aqui, era o que ele diria, imaginei. Levantei-me, colei a testa no vidro da janela e avistei B. conversando com um sujeito sujo e sorridente. Por impressão, todos sorriam, inclusive os outros transeuntes da avenida movimentada, talvez à custa do bonito dia invernal. Fui até o banheiro e vomitei.

Há três meses havíamos nos instalado naquele quarto sentindo-nos relativamente tristes em deixar para trás o amigo com quem antes dividíamos as contas. Ali, os banheiros eram distribuídos aos pares para cada um dos três andares com cerca de cinco quartos, mas ninguém teria coragem de usar as banheiras com aquela aparência encardida. Mesmo o ato de bochechar a água saída da torneira – fiz assim mesmo – não me parecia muito higiênico, desde que me dera conta de que o lugar estava infestado de ratos.  Eu podia sentir os segundos se arrastando como um velho relógio de corda e notei que, ao entrar no quarto, era difícil não olhar imediata e profundamente para o dragão barbudo que continuava impávido encarando a janela. Talvez estivesse com fome, uma sensação da qual eu me lembrava vagamente embora ainda soubesse ser importante à sobrevivência.

Abri com cuidado a tampa de vidro que cobria a caixa como que estudando a reação do bicho que fez olhar pra mim torcendo o pescocinho. Minha própria reação foi olhar para o teto perto de onde estava uma grande caixa onde guardávamos bolachinhas e snacks, sobre o guarda-roupa. A caixa de bolachas havia dormido aberta, o que não era direito, por causa dos ratos, e, agora, aquela comida só serviria mesmo para alimentar o bicho. Então eu arrastei a única cadeira do lugar, subi para pegar os biscoitos e desmaiei. Assim considero, não sei por quanto tempo, mas a caixa de vidro do bicho, agora vazia, refletia um vergão em minha testa que, novamente, meti no vidro da janela para ver a rua, que também parecia vazia, ainda bem, B. andava desaparecido assim como o bicho, o que, por um e outro motivo me causava alívio e desespero. 

Onde estava o dragão? Onde estava B.? Os snacks espalhados pelo chão empesteavam o quanto com cheiro azedo e não era o sangue em minha testa que doía, mas o sangue que corria em minhas veias parecia distribuir a dor dilacerante que me cobria dos pés à cabeça. Abri um naco no braço e fiquei observando meu sangue escorrer. Às seis e cinqüenta e quatro, morri, mas, ainda que à distância, pude observar o dragão barbudo devorar cada rato que se aproximava de meu corpo (então era isso que ele comia!). Entristeceu-me B. não tê-lo me dado antes.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Berenice


Queixo proeminente, olhos sorridentes: assim é Berenice. Olhos sorridentes eu disse, mas os sorrisos desses olhos me causam arrepios, vez ou outra, nojo. Porque eu sei que ela guarda em cantos de si o insano prazer de ver seu poder despedaçar os outros e, todo sorriso seu, parece estar intimamente ligado a isso.  Amacia a voz, estuda sua presa, aplica o golpe com delicadeza e, slap, rouba o que for do outro, depois se orgulha de seus botões: como sei apertar meus botões, diz! Como sou boa atriz! Ainda mais se a amam, qualquer um desses, para ela, é dos mais bobos. Desconhece boas intenções embora as apresente constantemente em convenções vestida umas vezes de pérolas, outras, de trapos. Berenice, a qualquer momento, fana. 

Sua consciência entorpecida ouve uma voz repetir: não quero causar nenhum mal aos outros, quero, entretanto, todo bem apenas para mim. Os que enxergam melhor vêem suas agendas tomar refeições de pobres, dinheiro de trabalhadores, lágrimas de sensíveis, dignidade de crianças. Berenice, entretanto, afirma que não nada frauda, os outros é que bem lhe pagam sua adorável companhia. Estúpida, amarelada, engajada em comunicar-se apenas com quem puder lhe trazer algum benefício, tenha muito cuidado quando Berenice estiver em sua casa, algo ali, será destruído.

Mas não somente atrás de si se vê tanta destruição. À frente também, cara Berenice que usa óculos coloridos para não enxergar sua própria imundice. Jogada entre as quinquilharias do mundo, despida da consciência que lhe ensinaria porquês, Berenice vê seus sonhos se despedaçarem como castelos de areia que mal foram construídos. Ela não sabe que, sozinho, não se constrói nem uma tapera nesta vida. Mas, para os que dizem: “pobre Berenice! Jogada entre as quinquilharias do mundo!” ela guarda o velho sorriso: os olhos refletem a presa que alimentará sua fome de círculos: uma vida inteira espalhando sofrimentos minúsculos, quanto desperdício! Berenice está presa em sua própria cadeia de vícios, mas anda solta pelas ruas, adorando seu próprio umbigo. Cuidado se a vir e, se puder fazer isso por mim, meta-lhe logo um tapa no ouvido.  

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Meias


Cada palavra, uma gota
As coisas que calei agora se escondem de mim
Mal encontro minhas meias, rodopio na sala, mal encontro minhas meias palavras
Perdi as chaves, bati a cabeça no armário
Tenho que parar de me esquecer do que ia mesmo fazer, não, não me lembro
Há qualquer mágica no ar, e quando há, eu sei, estou me afastando do mundo
Há qualquer mágica no ar, eu percebo e rodopio na sala, mal encontro minhas meias
(palavras) cada uma, uma gota, um pote cheio de gotas congeladas, eu as comerei para depois
Depois que o sol nascer – queria não ter medo do escuro, mas:
As coisas que calei agora se escondem de mim –
Cada palavra, uma gota do veneno que me corrói por dentro
Eu não tenho escolha: ou morrer ou vomitá-las.