Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Minha querida

Toda vez que te amo, acho que posso mais, acho que viro uma lâmpada e é só me esfregar que seus desejos se realizam, acho que posso me aproximar do seu peito e sugar com os lábios todo e qualquer sofrimento, acho que posso pintar suas coisas de rosa se essa for sua cor preferida, acho que posso te fazer esquecer quem te esquece à mingua, acho que ainda posso te levar para ver um rio de água limpa, acho que posso te ensinar a dançar Pixies sem tirar os pés do chão, acho que posso te carregar montanha acima para ver um pôr do sol, acho que posso subir aos céus e descer ao inferno numa mera quinta, acho que posso ser sua mais boba amiga, acho que um dia posso inclusive ser rica e te comprar aquele aparelho.

Mas a realidade é sempre uma parte ínfima do que acho, acho que tudo que acho da vida é um exagero e, você, já então uma exagerada convicta, seja bem vinda ao mundo das boas mentiras, minha querida. Antes de qualquer coisa, te agradeço cada sonho gigantesco, é só disso que a tia se alimenta, é só disso que a tia precisa.

quarta-feira, 30 de março de 2011

A borboleta que nunca eclodiu

Acho que a Clarice Lispector também viu desabar uns pedaços de si com a chegada das chuvas, das enchentes. Então disse "até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."

Não sabem, por exemplo, que eu mesma nunca me perdôo e só consigo perdoar os outros depois que os deixo ir. As mesmas notas que me massacram fazem as vezes de antídodos e me purificam. No começo, eu costumava me perguntar se viam a inconsistência contida em qualquer coisa, que nunca estiveram ali se um dia vão deixar de estar, que o tempo é uma mentira mal contada e que a felicidade é como um bicho fugidio, um gato selvagem que se aproxima, se deixa acariciar e depois engole a mão que lhe amacia.

Mas, até que eu chegasse a brincar com tigres, rir das bobagens do tempo e enxergar o que, das coisas, nunca deixa de estar... bom, é só dizer que já fui muito triste e não tenho, para contar, nenhuma grande catástrofe. Não é de hoje que vivo trancada em quartos, como a borboleta que nunca eclodiu.

Só se impressionam com a minha frieza os que conheceram meus arroubos de afeto, mas se impressionam porque não contam o tempo como eu conto. Eu não gosto de perdê-lo com bobagens, gosto de ganhá-lo com felicidade, de recheá-lo com as coisas que ficam. Umas vezes que só precisei de um abraço, coisa que nem custa dinheiro, ouvi as coisas mais estúpidas e porque chorei os olhos fora, me chamaram de lunática. Depois, quando mal lhes lembro o nome, me chamam de friática, mas quanto tempo acham que eu poderia suportar chorar às bicas? Sabe-se lá o que isso custa a um corpo humano? Não sabem que cada adeus irreversível me manteve viva mais um tempo e que, de outra forma, eu não saberia perdoar.

Por final, por esse lado, é ótimo ser muito orgulhosa e distante e, por isso mesmo, ter pactuado ir até o final da vida, mesmo sem achar que tenho qualquer das coisas que se exige para tanto. A começar por isso que acaba de ser dito, de não ter confiança sequer de que eu possa ir muito longe. Só posso então me orgulhar de ter chegado aos trinta. Até mesmo a vida parece ter se impressionado porque resolveu me presentear com o mais bonito dos amores. Agradeço de bom grado, mas ainda estamos aqui vida, você, eu, nosso pacto.

Também por ter sempre ficado na companhia dessas coisas que não se entende, vê-las me inundar de agonias chorosas, vê-las levar um tanto bom de meu tempo e inchar meus olhos, talvez por isso eu tenha aprendido que há o que se aprenda mas não se ensine nunca. Eu por exemplo sei que de nada se sente tanta falta quanto da felicidade, nada é mais triste do que vê-la partir para dar lugar a dias cinzas. O que não consigo ensinar é que não é tão difícil assim fazê-la ficar. Umas vezes, só é preciso um abraço.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Ficção X realidade

Uma pessoa do (no) twitter discorda, e por isso twitta ou bloga, ou bloga e twitta o post, sobre sua discordância, descontentamento, com a atitude de outra pessoa que twittou anunciando seu suicídio e explicando que o faria porque o namorado havia pouco (não sei ao certo o quanto) antes se suicidado. O que sei das pessoas envolvidas resume-se a fotos escolhidas à dedo por elas mesmas e espalhadas net afora. É provável - mas, nem isso se poderia afirmar - que os próprios envolvidos não se conheçam e tenham sobre si mesmos o mesmo parco conhecimento baseado em imagens e frases escolhidas a dedo e espalhadas pela net, tudo num tom de: "bom dia" "estou no shopping" "gosto de bananas", isso, levando-se em conta que os mortos envolvidos agora já mais nada sabem, blogam ou twittam.

Não posso dizer o mesmo de Thomas, Tereza e Sabrina, de quem conheço pesadelos, aflições, fantasias sexuais e, dos primeiros, inclusive a morte um tanto romântica e conjunta. Posso dizer de Tereza, que nos conta também sua amarga infância, que quase lhe conheço toda a vida. Mas, é claro, nenhum dos três existem.

Também se diz que o texto todo deveria estar contido no primeiro parágrafo para entender-se com o tempo escasso atual dividido entre twitts, posts, e papparazzis. Os textos longos não podem esconder segredos, os segredos devem ser logo revelados aos olhos ágeis que miram lá e, simultaneamente, a pizza e o café engolidos, assim como o que se lê, seriamente pouco nutritivos.

Então, à realidade anêmica que se desenha falta qualquer substância, como se pudesse à realidade faltar a própria matéria prima que a constrói: carne, osso, sentimentos indesejáveis. Os personagens criados são mal escritos e mal desenhados, embora, sempre bem fotografados. O que não sabem os maus autores é que com a ficção não se brinca porque castelos de areia não se sustentam. Altura, peso, cor dos olhos, roupas e gostos musicais, pouco explicam. Penso, por exemplo, que a Tristessa repentina tenha verdadeiros contornos de realidade e que, o que me atraia nos livros com segredos escondidos bem longe do primeiro parágrafo, não seja a ficção construída, mas a realidade bem desenhada.

Seria desolador pensar que os robôs de busca conheceriam os autores por trás dos personagens melhor do que eles mesmos. Assim como são desoladoras as melhores ficções científicas. Saber que os que sabem são tão pouco humanos. Que ficção estúpida assim se cria. E vão dizer que eu me escondo no mundo dos livros, uma bobagem que os próprios robôs de busca não diriam.

Vazo

Como não consigo trabalhar - cagaram no meu dia - venho aqui me divertir no meu blog feio sem um mísero leitor. Me tiram do sério com um sopro?

Derrubem suas paredes, diz o anjo, tudo vai parecer mais romântico, até a responsabilidade que te impormos, te tirarmos, te devolvermos depois, a gangorra é nossa, aha, uhu. Dois dias sim. Três dias não. Aha. Uhu.

Há meses sou uma espécie de cachoeira psicótica ou psicotrópica: vazo. Olá anjo amigo que escreve coisas nas paredes, tudo bem, admito, cansei! A carne mofou, os ossos racharam e acaba de nascer um bigode branco em meu buço.

Por que não dizem: estamos aqui para brincar com você e com a sua cara, aguardamos ansiosamente a hora de cagar nos seus sentimentos? Estragar segundas, terças, quartas, quintas, sextas e fds's é nosso lema. Cansada? Ou sensível demais? Aha, uhu. Você precisa trabalhar? Isso lá é trabalho? Aha, uhu.

Estou fudida, mal paga, expulsa de casa, não achei cigarro para comprar, nem apartamento para alugar. Ou seja, voltei a fumar, só não consegui comprar meus benditos cigarros. E retiro o que disse antes. Antes os vícios que se compram em supermercados, drogarias e bocas. Antes esses.

"abaixe sua guarda" "derrube suas paredes" my ass. My ass, mamma africa! Isso é para o pessoal que tem emprego estável, família, religião e controle emocional. Não é o meu caso, embora eu tenha sim, uma saúde de ferro, sem minhas paredes, eu vazo. Você aí, vaza? O pior é vazar e ter uma saúde de ferro, não é mesmo? Isso nos dá, sem cigarros, mais muitos anos de vida vazada. Então, voltei a fumar, também para encarar meu novo trampo de pedreira. Espero que na próxima vez que chutarem a minha cabeça, quebrem o pé num murão de concreto. E chega de vazar.

De onde nascem os poetas

Ainda que oscile de um lado para o outro, sempre me entendo melhor com minhas dúvidas. Como naquele tempo em que quis ter filhos porque até mesmo os dias de inverno andavam bonitos. E se os tivesse tido? Gêmeos de dedinhos tortos e cabelos encaracolados, pequenos macaquinhos se embrenhando nas árvores da ilha que eu tinha criado. Planejei: não saberiam falar inglês, não lutariam karatê, não seriam ótimos empresários e eu mesma os ensinaria a nadar, todos os dias, seriam duas crianças poetas. Nove meses depois, não nasceram. Também! os invernos voltaram a ser demasiadamente frios.

Mas sempre me pego pensando se de fato não os tive. Se não estão em algum lugar em mim, fecundados. Ou como se explica que, nas horas de solidão extrema, eu me transporte àquela casa de flores e amores: ali me esperam meus dois pequeninos macacos. Recebem-me com saltos efusivos, contam-me histórias como se saíssem intermináveis de uma cartola. Ontem mesmo, os meninos seguiram os cachorros, que farejavam à esmo, na floresta de rubis. Não é que encontraram uma ostra gigante? Lavaram-na, prepararam-na, enfeitaram-na como a uma cama, de onde escrevo agora, já quase dormindo.

Às vezes me pergunto se de fato não os tive, meus dois filhos poetas. Ouço o eco de seus gritos em rimas, vejo as pegadas de suas passadas desenhadas, somente ao lado deles, me entendo com a vida. Mas, não, não, antes duvido, talvez, sim, quem sabe, ninguém sabe de onde nascem os poetas. Quem sabe de fato não os tive? Se eu sou filha de sonhos, por que não poderia parir poetas?

domingo, 27 de março de 2011

O gato

Quebraram suas pernas gato
suas duas patas da frente
fui eu quem te vi: desesperado
um tanto agitado, ou quase morto
saltava de um lado para o outro
não era alegre, era assustado
eu que te vi: um gato gordo
de raça, atropelado, ou quase morto
tive medo de ti que teve medo de mim
e olho no olho: você sumiu num buraco
quis te ajudar, gato
me senti tão impotente
como toda manhã, quando acordo
e olho no olho do mundo todo
a agonizar nobre e doente
como a quem tivessem quebrado
também as duas patas da frente

quinta-feira, 24 de março de 2011

As paredes tinham 13 anos de idade

Não é que eu não saiba agora. Você sabe, eu nunca soube. Mas, aqui, agora, hoje, neste quarto, eu pego meu velho caderno de poesias e me entorpeço de uma coisa que parece saudade porque saudade é dor, não porque saudade é falta. De fato, nunca sinto falta do que fui ontem.

Rasgos, pedaços, as fotos de polaroide do cd do Pearl Jam, aquela época, eu de joelhos posando de santa em plena efervecência de pecados. Era bom? Acho que não porque, vc sabe, eu nunca soube. Achava que sim, achava que não, como quem anda numa corda bamba esperando ansiosamente o momento do tombo, e ai, como me decepcionei ao alcançar o outro lado do precipício! Vocês tinham razão, eu não presto pra isso de viver. Vocês foram ótimos, eu é que ia atormentada. Vou. Sou.

Ou me entorpeço porque as paredes deste quarto ouviram muitos - senão todos - os meus gritos. O velho pesadelo que me acompanhou durante anos: eu andando dentro das paredes que eram como corredores da prisão em mim. Ela presa em mim: não posso, não faço, não concordo, não espero, não quero, e aí? quando sai o tal momento derradeiro? Não. O niilismo se transforma em câncer nos poetas, diriam os psicossomáticos. Utilizei-me da hipocondria para explicar cada pedaço de desespero vomitado. Ouviu dizer por aí que a hipocondria salva? Eu disse.

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Estou em casa de mamãe, ouvindo os gritos surdos que deixei por aqui. Antes deste macio, eram dois colchões velhos se deformando no estrado, eu me deitava torta, tinha gastrite, insônia e achava ruim quando alguém dizia que gostava de mim, ah, isso são horas? Escrevia, escrevia, rasgava, rasgava, fiz um curso de magia, quis ser bancária. Enquanto gostavam de brigar e juntar coisas, eu gostei de colecionar mistérios que não me serviriam pra nada. Tive medo, e nunca entendi por que não passei fome nos invernos. Ouvi os outros dizerem que isso era certo. Erraram?

E tem esse fragmento de poema escrito aos 13 anos de idade, profético:

Lutarei indiscriminadamente contra mim mesma
Caminharei em prol do futuro como uma lesma
Terminarei meus dias na Terra pensado em nada
Gritarei ao mundo o que sinto, calada.

Como posso escrever verbos em futuro?
Se tudo que vejo à frente é escuro
Como posso querer advinhar algo tão perto e tão distante
E esquecer-me do que sinto agora neste instante?

As coisas acontecem
Independente de lua e razão
Elas só acontecem
Não querem saber da questão
E enquanto as pessoas se perdem
Tentando entender a vida
As coisas acontecem
Pra isso não há saída


As paredes tinham 13 anos. Dentro, uma velha criança sábia morava e quase se sufocava. Sei que te acusaram de escapista, Cassandra, mas, quem não gostaria de escapar do mofo e das teias de aranha? Sei que te acusaram de escapista, Cassandra, mas, quem sabe (?) não fosse mesmo hora de vazar por aquela porta? Velha criança bruxa sábia, linda, boa bisca, minha querida e delicada mentirosa. Quem sabe (?) só os amores possam segurar molhos de chave, Cassandra, quem sabe (?) só um amor que te prendesse pudesse abrir sua gaiola.