Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

É que

Descobri que eu não sou eu.

Antes de ser eu,
sou o vento, os pássaros
que alívio! não sou o tempo que passo, sou só este momento.

Não sou a voz que julga com os preceitos dos outros, sou o silêncio

Não sou do tamanho em que caibo, sou o imenso

Sou uma alegria que mora dentro e quase ninguém vai vendo
Vai vendo:
Descobri: eu sou o que está vivo,
você,
é que
segue morrendo.

Vai vendo:

sábado, 22 de janeiro de 2011

A casa dos meninos (2)

Meca

Onde está a poesia do Meca? Parece que caiu inteira no chão depois do primeiro amor. Muito falou-se sobre isso: “o Meca não sabe amar”. E quem é que sabe? eu me perguntava em silêncio. Não queria quebrar aquele momento mágico em que nos auto-admirávamos tanto por conseguirmos ser condescendentes com as terríveis travessuras de Meca, ainda que não houvesse ali ninguém menos travesso.

Ele não chegava logo para jantar, por isso nos reunimos no quintal, sob a mangueira dos deuses. Era uma necessidade de avaliar a conduta do Meca na última noite. Mas tudo displicentemente enquanto nossos estômagos vazios tornavam-se pouco a pouco mais importantes. O sol aquecia por trás as nuvens de chuva que enchiam o dia de mormaço. O Meca não chegava logo, reclamavam os mais impacientes (entre os quais, claro, Ravel).

Na última festa grátis da UFU, um bêbado e desfigurado Meca teria falado meia dúzia de merdas para Eva que, na hora, só fez espremer sua própria testa com o dedo indicador e o dedão, fazendo cara de desentendida para o Maurício. Assim Eva contou: entre outras sandices, Meca teria pedido que Maurício se protegesse daquela alma perniciosa: a Eva.

Era de dar dó. Todo mundo concordou.

Pouco depois Meca chegou se aproximando da roda.

Sua figura um tanto mais franzina tinha mãos nos bolsos e chinelas franciscanas. Ravel ameaçou apelidá-lo de Barbicha. O moço bem apessoado do Direito aparecia agora com os pedaços do que tinha sido um dia, nas mãos. A estiagem dos barbitúricos, aquele seco momento do dia em que se levanta sóbrio e infeliz, aquilo nunca foi para os jovens que são fracos e inocentes, aquilo se custa suportar, a força de um estômago tremendo de medo da própria fome de se alimentar de morte, ver a fome ir ficando maior que o medo, ver a mão acender o cigarro, se ver estragando tudo.

O esforço enorme que Meca fazia para suportar aquele enjôo nos fez respirar mais fundo quase para lhe tomar o cansaço. O cabelo molhado, a barba crescida, as roupas largas, a presença de Eva e seus desenhos indecifráveis. Era como se não houvesse no Meca mais nada a queimar e suas cinzas tivessem chegado para jantar conosco. Ravel convidou: bóra comer pelo amor de deus.

A meia dúzia de gente foi abandonando mais triste a mangueira para se acomodar na cozinha espaçosa e precária. Eva e Meca ficaram. Ele pediu desculpas. Citou umas frases da própria Eva, incluindo uma dita no alto daquela mangueira, que ele tinha que cuidar melhor de sua cabeça, que era a única coisa que ele tinha e que a coisa toda andava muito mal. Mas que ele ia tentar, ia deixar Eva em paz.

Ambos se saciaram com três garfadas. Eu me fartei de salada com limão. Alface e rúcula colhidas do quintal. Ravel já lavava a louça.

sábado, 15 de janeiro de 2011

A casa dos meninos. (1)


Eva

Passei 30 minutos tentando decidir se almoçaria ou não na casa dos meninos. A Eva havia me convidado por telefone durante uma gritaria de gente pedindo para que passassem logo o telefone. Uma gente impaciente querendo falar comigo.

Eu tinha cólicas dilacerantes àquela hora, houvera sido dominada inteira daquela emoção que vem do ventre para fazer a vida toda parecer um grande incômodo, uma cólica terrível, filha da puta de d.i.u. E a febre se misturando ao enjôo: TPM.

Talvez ver essa criançada que fugiu de casa no natal, fosse bom para espairecer um pouco, abrir os caminhos fechados. Ao mesmo tempo, meu corpo me oprimia, eu já andava me contorcendo. Maldita cólica, maldito d.i.u.

Abri minha bolsa em busca da frasqueira de remédios e não estava lá. Era incrível, já me havia me esquecido de um tudo naquela casa de gente tórrida, mas era a primeira vez que deixava passar a enorme frasqueira colorida.

Era óbvio que eu perdera o direito de escolha: tinha que ir até a casa dos meninos buscar minha frasqueira: lá estava guardado o delicioso buscopan composto. Tomaria logo dois. Mas não sei. Talvez fossem os dias nublados, chuvosos, estranhamente mais brancos e brilhantes, doloridos na retina, na rotina, no mau-humor, no bico da cara fechada. Talvez fosse TPM. Não sei. Entrei no carro a contragosto pensando que a situação toda havia se decidido sem meu aval o que é sempre cercado de uma desconfiança ressentida da vida: então é assim? eu não mando nada não? Mas eu não podia decidir meu almoço na hora da janta. 

Eva veio abrir o cadeado do portão entrelaçado em bucha, com seu cabelão que ostenta cachos nas pontas, enrolada na saia longa que já é segunda pele alimentando também os ácarozinhos de estimação. Abriu seu sorriso de convinhas e soltou: “tamo esperando ôce pra jantá muié” que é uma senha nunca substituída por “almoçá”. Os meninos são seres notívagos: só jantam: mesmo ao meio dia.

Nunca consegui chamar a casa deles de caverna. Chamo de casa dos meninos. Mas as paredes estão cobertas dos desenhos da Eva: florestas, cachoeiras, máscaras e pássaros, muitos pássaros. Há quem não veja conexão (o Meca é um deles), há quem não desembrulhasse nunca a Eva. Mas vê-se de longe que ela tem um distúrbio secreto que deverá ainda fazer muitos homens se derreterem para sempre. 

Por hora há o Maurício, de quem não falarei, não por implicância, mas por saber que as horas embora passem mais devagar para Eva, passam também, como todas as horas passam. Ela contou que havia feito três tatuagens bem pequenas no tornozelo: um sol, uma lua e o número três. Me mostrou ainda com o plástico cobrindo as feridinhas. Acendeu um cigarro para arrastar ainda mais suas falas: “cada tatu tem sua poesia”.  Por que o número três? perguntei. Ela disse que pensou noites e noites a fio e, numa dessas noites entrou pela janela um vento, como uma revelação. Ela então entendeu. A lua precisava do sol, a noite precisava do dia, o equilíbrio, entende? Ela tinha que tatuar o sol e a lua.

E o três, afirmei. “O que?”, ela perguntou. O três, sua maluca, e o três? Qual o significado?

_ Ah. Fazer tatuagem em número par dá azar.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

por Alfredo: De longe

Conheço de longe esses seres humanos que deixam escapar lágrimas em plena luz do dia. Esses olhos que estão sempre vazando. Por mais que aquela garota tivesse uma postura cheia de coisas: bolsas, sapatos, brincos coloridos, cabelos descolados: não raro, era vista por aí, descalça, com os olhos vazando. Porque, no fundo, era tímida e nunca teve olhos verdes. Nunca mesmo. As perucas, as pulseiras, nem era isso seu legado. Tinha um jeito outro de compreender melhor as coisas em silêncio. Como dentro de uma floresta em si mesma, como se fosse pecado deixar que se visse cachoeiras ali, ainda que de relance. Isso também explicava os saltos, os cílios postiços e as unhas enormes.

Eu, entretanto, um dia, passando, vi! suas cachoeiras. As outras coisas sumiam como feitiço quando estávamos juntos e ela era, às vezes, doce e nua. Dizia que eu podia ficar à vontade, contava piadas e ensinava algumas boas receitas para curar-me a garganta. Aí tinha os cabelos amarrados e usava uma camiseta velha, já que nem era tão garota assim. Ou era mais, quando estávamos juntos e ríamos bobos daquelas piadas. Pela manhã, sentia-me recebendo os fluidos mais frescos de seu corpo com(o) café passado na hora.

Tanta generosidade, entretanto, se perdeu a caminho do inverno, quando ela hibernou em uma tristeza carrancuda e mandou que eu me virasse. Eu tive que ir, fazer minhas coisas sozinho: guardar a louça, lavar a roupa, por a toalha para secar. Não bastasse a solidão de vê-la distante, tive ainda que aprender truques culinários para adoçar-lhe os lábios pelo menos. E quis eu mesmo, desde a massa até o recheio, fazer, sem ajuda, tortinhas de morango. Foi a casa ir se impregnando do mimo para ela se levantar e chegar à cozinha com os olhos rasos d’água.

Agora é primavera, mas eu já sabia antes, porque tenho o talento de conhecer de longe esses seres humanos cujos olhos estão sempre vazando. Ternura. E apreciá-los, quando é preciso, de longe.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Meu clipe para Bjork (leia antes e depois leia em voz alta junto com o play ou em voz alta por dentro)...... :)




Acho que toda vez que ouço essa música, neva no meu quarto, na minha cidade. Assim as palavras se colorem e se escrevem nas paredes. Quase como uma maldição boa, muito quente por dentro, como se os flocos de neve mais queimassem que congelassem qualquer coisa. Eu imagino que as coisas não sejam assim para todas as pessoas e por isso elas se pareçam sempre mais felizes do que eu, ou tristes em outro sentido, no meu sentido, quero dizer. Eu dizia que, de fato, entendo que tudo esteja cheio de amor. De fato, a primeira vez que vi na televisão uma guerra tive que perguntar para o meu pai o porquê daquilo. A guerra do Iraque. Ele pediu que eu imaginasse uma família que, de repente, invadisse nossa casa e quisesse nos tomá-la. Ainda não entendia. Por que uma família, de repente, invadiria nossa casa para nos tomá-la? As guerras, as minhas próprias discussões acaloradas internas, Marte. Eu não entendia. Mas quando neva, não cabe mais, eu fico muito doce, também me derreto, me alimento do que gosto, das doces frutas que a neve produz. Eu gostaria de colocar aqui os que amo e seus sorrisos, se me permitirem. Deixo fazer parte do meu quarto todas as minhas melhores lembranças. Eu nem sempre fui estúpida, mas quando fui, quebrei muitas vidraças. A força de Marte. Não sei se é tão difícil assim suportar minha indiferença, ela chega para guardar minhas fortalezas, mas não se aproxima tanto assim de mim. Aqui dentro estão todos vocês e cada delicioso momento. Eu nem sempre fui estúpida, fui doce muitas vezes. Vi cada cor em seus cabelos, que vocês nunca imaginariam! Senti perfumes, tracei personalidades, cuidadosamente, em tricôs ora bem humorados, ora tão, tão, tão tristes! Aí ia escrever poema, derramar rios de lágrimas. E a minha indiferença chegava em mares de solidão. Estava, mas não estava ali. As pessoas se assustavam. Custam entender que eu estava sendo tão doce, fazendo poemas. Tem que haver uma música para me incomodar. Essa da Bjork não me incomoda não. Muito pelo contrário. Faz nevar no meu quarto. Me deixa encher meu quarto de palavras, suas paredes, minhas velhas alegrias. Enquanto as crianças brincam no parque e eu mesma viro criança para escrever uma pequena história sobre isso. Eu teço planetas muito distantes de Marte, muito particulares, de fato. Queria que fossem universais, mas não são, de fato, não são. Eu preciso ser seletiva ao convidar minhas memórias. Só as melhores lembranças: quando a luz do sol fazia espetáculos gloriosos em meus cenários. Só de pensar no outono, já me enterneço do frio. E estar distante das bolas de fogo, das violências gratuitas, porque neva e é preciso tomar um leite quente. Lá fora os flocos mais queimariam que congelariam, todo mundo sabe disso. Não se atreveriam a me ver explodir. Antes meu carinho distante, minhas dúzias fartas de sorrisos. Há qualquer eletricidade maior no ar, por isso minhas lágrimas, duram anos, e todo mundo sabe disso, dos meus dramas, da eletricidade, das lágrimas, do choque. As explosões das águas são sempre mais pesadas. Não se atreveriam a invadir meu quarto no inverno. Por que fariam isso?  Cada floco de neve, cada palavra colorida, o silêncio invadido pela música da Bjork. Unravel. Homogenic.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Simone (um conto no meio do dia)

Simone era bem pequena e já estava fadada ao fracasso. Nenhuma súplica muda seria ouvida porque não existiam ali os ouvidos que dessem conta daquele recado. Óbvio. Em um apartamento espremido entre tantas outras coisas de cidade grande, as crianças não crescem como flores nem os cachorros latem pelos melhores motivos. E Simone queria latir de ouvido, como quem canta. Alto, sentindo uma partezinha da garganta que quase ninguém vê (quanto mais ouve!). Ali, ninguém entendia disso, nem sua mãe, nem sua avó, nem seu avô, muito menos seu pai – que não voltava nunca de onde tivesse ido. Para aquela gente, latir, bem, era, claro, coisa para os cachorros. Simone estava fadada ao fracasso.

Não que fosse de todo diferente, tinha lá seus vinte dedos, seus dois peitos por inflar e algumas manias (rosnar à hora do angelus e uivar ao meio dia) como todo mundo tem suas manias. Mas, os avós, que a tudo julgavam ter visto, aquilo não tinham visto nunca, aquilo de uivar à mesa do almoço. O que se crê do que se viu, parece impossível do que nunca se viu, e não se vê por aí as coisas que nascem da impressionante habilidade de ouvir o que não se diz. E assim que ouvia as coisas não ditas, Simone queria dizer de volta, sem ver outro jeito entretanto: só se fosse latindo, sentindo uma partezinha da garganta que ou arranhava ou fazia cócegas e de cuja existência quase ninguém sabia. Isto fazia quando ninguém mais via: latia.

Os doutores eram unânimes em dizer que a coisa toda era psicológica. Os psicólogos eram unânimes em dizer que a coisa toda era esotérica. Os esotéricos eram unânimes em dizer que a coisa toda era física. Os físicos eram unânimes em dizer que a coisa toda era metafísica.

Outros que sabem (quem dera chegassem logo os que ouvem!) diriam que, Simone não falava porque ainda nem sabia latir, o que seria engraçado e do que os Outros Que Sabem ririam às pampas. Óbvio. Se Simone queria antes latir, antes não falaria nada, era, além de muda, coerente com seus princípios. Isso acertaram mesmo, que ela fosse coerente, tivesse olhos em brasa e dentro um grito preso, uma qualquer raiva que, com Simone, ao longo dos anos, ia crescendo.

Enquanto isso, a tudo assistia calada, aprendendo de cor todas as palavras também do inglês para latir em barks quando sozinha, sem ser incomodada.

Durou assim até a azeda festa de aniversário de seus 15, quando a irritou que sua mãe temperasse o bolo com lágrimas e tivesse ainda naquele dia entupido a minúscula sala com balões coloridos que ali pareciam os grandes invólucros dum velho desgosto. Não falou nem latiu. Não comemorou. Abriu a porta e saiu.

Sabe-se bem que as coisas das cidades são todas muito perigosas, que atrás dos postes podem se esconder os seres mais hediondos. A mãe de Simone não se conformava, de um tudo tinha tentado e,se agora se resignava, era porque dois calmantes faziam o bom efeito. Faltou-lhe um pai que chegasse e fizesse qualquer coisa. Era o que se ouvia entre o choro. Faltou-lhe um pai, repetia, aquele cachorro, repetia. Aquele cachorro.

Mas Simone já andava longe, já latia alto, já mijava nos postes e nos seres hediondos que atrás deles se escondessem. Quase como se tivesse pêlos, quase como se tivesse sido criada do nada, quase como se já estivesse na maior idade, quase como uma cadela vadia.

Só muito mais tarde, aos 80, ao meio dia, uivando seu último uivo entre os amigos de sargeta que com ela conheceram o mundo inteiro (Nova Yorks, Londres, Sidneys e Brasílias...) Simone se daria conta de que estivera fadada ao fracasso, não tivesse percebido cedo que a porta daquele minúsculo apartamento, naqueles velhos dias, sempre aberta, jazia.

Faça as contas

As fórmulas estão erradas
Os resultados não batem
Vocês estão errados
Por conta das contas
Que não se acertam nem nos dedos
Se eu contar, não acredito
Os resultados não batem
Como as receitas de bolos embatumados
E a torre que entorta
Como os edifícios de areia de mar
Um alvo errado na hora do tiro
O tropeço que quebra uma perna
O que era pra ter sido
Não fosse o cálculo errado
Dá certa falta de ar
De ver a calha entupir
O rio fedido entornar
A paciência se encher
Por conta do que era pra ter sido
E o que era pra ter sido?
Não fosse o cálculo errado?
O que era pra ter sido?
Uma nascente a mais talvez
Um ou outro pássaro
Uma memória doente a menos
A morte das indecências morais
No meio do caminho: a cura
A gente estaria melhor
No futuro do pretérito perfeito
Agora parece tão tarde
Para se refazer essas contas
Ainda que nem tome tanto tempo assim
Olhar a vida com amor