Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Vago plano para não mudar de vida

Sei que não neva em Uberlândia. Mas eu sinto o gelado desses dias. Se me viro praqui ou prali, tanto faz. E de vez em quando eu ando debaixo de chuva mesmo. Tem gente que me vê, para o carro, me segue, grita meu nome, oferece carona. Eu não ouço. Ignoro, sem querer, porque não ouço. Sei depois, porque me contam compreensivos, acostumados com minha loucura. Eu não iria querer carona de qualquer maneira. Continuo sentindo a chuva, o arrepio. É só usar uma bolsa de plástico.

As constantes ofertas de ajuda.São risíveis. Pelo menos para mim. Me salvam da chuva, dos vícios, dessa terrível conduta distraída. Não me beneficio de nada disso. Eu vou perdoando os defeitos dos outros até me dar conta de que posso me retirar do recinto quando bem entender. Saio de fininho e finjo que nunca estive ali. Como se fosse um personagem ausente da minha própria história, esperando que Alfredo volte com a minha com a minha crença em qualquer coisa. Não acredito que vá acontecer. De fato, não tenho notícias.

As pessoas se aproximam de mim para dizer as coisas mais absurdas, que fulano disse isso e aquilo de mim. Guerras inteiras em nome dos egos mais medíocres. Eu não defendo o meu: dou vexames históricos em festas chatíssimas. Faço a minha parte. Não sou menos ridícula do que ninguém, deixo sempre claro. Mas tudo vai ficando inóspito, como se eu fosse a própria aberração.

Aqui, é como se toda a minha tristeza tivesse sido extraída da alegria que eu tinha de me sentar de pernas abertas, não usar sutiã e abraçar meus melhores amigos. Tudo foi chamado de erro: meu sorriso expansivo, meu gosto por danças engraçadinhas, minhas sinceridades súbitas, minhas tempestades de choros intermináveis. Não sinto que possa contestar por agora. Mas eu tenho um plano vago de usar roupas indecentes por mais um tempo ainda. E ver no que dá.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A coisa que eu tenho

Muitas vezes me sento diante do computador e, olhando a tela vazia, sinto um esfriar no estômago, um sobressalto: pronto, perdi. Perdi a coisa que eu tinha. Perdi porque não dei atenção, não alimentei, deixei morrer à míngua. Fiz de propósito. Matei porque quis mesmo, matei de propósito.

Mas aí quem morre sou eu.

A coisa que eu tinha era assim de me armar para escrever e sentir o entusiasmo de ter chegado à única verdadeira festa que existe: a festa com os deuses: os únicos deuses que existem: os que criam universos.

Sentam-se ao meu lado e começa a bebedeira que, sem ressaca, deixa marcas nas costas, nos dedos, na alma. Eu sempre começo a brincadeira dizendo: há um carro amarelo à porta de casa. Do que os deuses riem muito. O próximo deus a falar, sugere o que fazer com o carro.

Mas aí eu sumo. Não sei. Não quero mais. Cansei. Preciso de um tempo. Que pena (!) ou não, os deuses não saem do meu peito e eu preciso deixar de alimentá-los porque quero que morram.


Nunca morrem. Comem um embasbaco meu vendo o pôr-do-sol, um sorriso meu vendo uma criança se enrolar no iô-iô, uma compaixão sufocante vendo o erro do que erra e não vê. Eles sabem se alimentar de mim, às vezes emburram, eu muito me assusto, eles voltam.


Talvez daí, venham meus acessos de solidão induzida. Talvez. Porque dois ou três deuses no peito, meus caros, me fazem a companhia dum mundo inteiro.


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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rúbia, minha porca borboleta

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__ Não suporto essa gente. Aquilo nunca leu um livro, acha que é intelectual porque é sujo. Já viu como tem a pele sebosa? Que nojo! Sabe? Outro dia, chegou encostando em mim! Me deu ânsia. Você acredita? Nem. Será que ele acha que eu estou super afim? Nem. Faz meu tipo não. Dá uma preguiça desse povo sentado embaixo de árvore, recitando cânticos, sabe? Isso me intriga: quem sustenta a maconha desses desocupado? E essas festa escura? Gente uivando pra fogueira, o que é aquilo? Me explica? Chega a me dar arrepios. Uma vez ou outra, vá lá, mas toda semana? O que tem de gente sem o que fazer no mundo, vou te contar, viu(?) Mas quando tudo está pior, o pior acontece: começam a espancar aleatoriamente meia dúzia de instrumentos e chamam de “música”. Que porra foi aquela da última vez que você me convenceu a vir num troço desses? Do nada, eis que surge um cara com máscara de porco, e outro, e mais outro, e um outro que começa a grunhir, literalmente, no microfone. Ai Cassandra, espeto de gato? Que nojo. Não sei como você come isso. Alías, não sei o que você vê nisso. Se ainda tivesse um broto pra paquerar, você precisa esquecer esse Alfredo. Você tem uns gostos tão estranhos, Cassandra. Sabe quem te achou linda? O Dudu. Te convidou pra ir da próxima vez com a gente para o rancho. E ele é Dudu caralho mesmo, viu engraçadinha? O rancho dele tem lancha, Jet Ski, a gente passa o dia todo na beira da piscina. Uma delícia. Olha aquele sujeito ali com aquele cabelo imundo! Pra fazer aqueles rolinhos ele passou oito anos sem tomar banho. Crédo. Nem. Não quero mais cerveja não. Náuseas. Sempre me pergunto: cadê a família dessas crianças? Porque é tudo filhinho de mamãe e papai, você sabe né? Criado a leite com pêra metido a revoltado. Sabe o que falta? Uma boa bacia de roupa suja para lavar. Gente! Vinho se toma no inverno. Regra básica. Nessa porra de calor, vão servir vinho? Brasileiro é povinho mesmo, cai dois graus no termômetro e sai neguinho de cachecol e luva. A cerveja acabou? Como assim? A organização de festa desse povo é assim: oh, quinta, tipo, sei lá, umas, xô ver, âhn, é, umas oito. O que fumou menos, contesta: oito não pode, tem que ser depois das dez e meia. Se não (?) nem isso! Ninguém se lembra de comprar a cerveja, arrumar uma banda decente pra tocar. Merda, Cassandra, enfiei o pé na lama. Me ajuda aqui. Olha isso, nem, perdi, minha sandália. Deixar de molho? É bom? Sei não, viu. Ah. Conheço aquela menina descalça ali. Gente boa. Você olha assim e pensa que ela é malucaassa e não sei que, mas ela é suuper de boa. Estudiosa, inteligente, fala francês, gosta de jazz. Se ela caga cheiroso? Não, tô falando sério, ela é gente boa mesmo, atriz, tá certo que eu não entendo muito bem as peças de teatro dela, mas já fui assistir a duas... e, por falar nisso, o que quer dizer o nome dessa banda? Borboletas sujas? Pau de bosta? Sério? Ainda bem que mudaram, né. Céus.Tenho certeza que nenhum desses meninos tem mãe. Não é possível. Gente. Meu cabelo está fedendo a fumaça. Não. Está fedendo a diferentes fumaças. Parece que essa fumaça entra na alma da gente e mesmo depois de lavar, não sai do cabelo. Olha isso. Não. Olha isso. Quantos anos essa menina tem? Doze? Criou peitinhos, mete um colar de côco, um cigarrão na boca e se acha. Se. Acha. Tenho um nojo de cigarro, sabe, não suporto. Mas. Gente. Está estampado em todos os anúncios: faz mal à saúde e as pessoas, num ato de estupidez sobrenatural , fumam. Agora. Me explica. Não querem morrer? Chegam baforando fumaça na cara da gente, empurrando, como se fossem superiores. Educação. O que falta neste país é educação. Se bem que, é a pobreza de espírito que me desagrada. As pessoas precisam aprender a conviver melhor umas com as outras, a respeitar o espaço do outro, sabe?



__ Quê? Rubinha, desculpa, não te ouvi. O que você estava falando? Da menina lá, que caga cheiroso? Rubinha, meu amor, vamos parar de subtrair e começar a acrescentar? Quer um gole? Relaxa, dor de barriga é ótimo para limpar as toxinas do organismo. Bóra pra frente ouvir um barulho? Vai começar o show. Ainda bem. Meu ouvido não é pinico.



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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nina tem sete anos (um conto no meio do dia)

As janelas estão abertas. Nina sente o cheiro: é chuva. Ela arregala os olhos, deixa a boca abrir num som oco, depois, dá meio sorriso: vai chover. Nina mal pode acreditar.



Arrasta-se atrás do sofá aonde sua mãe (por agora) se esquece (por querer) da vida. Alcança a janela e a fecha, para depois, na ponta dos pés enfiar o nariz nos entremeios que espirram água da chuva. Aperta os lábios enquanto cisma consigo que ninguém - em parte alguma - da galáxia - poderia sentir mais amor pela chuva do que ela. Cheira a chuva. Suspira. Então, rola como um tatu-bola invisível num movimento calculado de instante para emergir como uma sereia bem no rumo dos olhos de sua mãe que deverá responder à pergunta: “Me deixa brincar lá embaixo?”



Nina notou que, nas últimas dez vezes que choveu, sua mãe renovou a promessa de deixá-la brincar lá na chuva adiando-a para uma próxima vez com a maior cara de pau. Sabe disso porque tem escrito em seu diário diariamente, como houvera prometido à tia Alícia logo depois de desembrulhar o caderninho rosa no dia de seu aniversário de sete. Nina acha importante honrar suas promessas. Ontem, antes de dormir, tinha contado em voz alta as negativas da mãe ao seu pedido de brincar na chuva. Marcava os dias amputados da diversão que mais amava, desenhando uma estrela verde no canto superior da folha e amargando as promessas quebradas da mãe.



Ontem, como passasse o dia todo num ameaçar de chuva constante, Nina resolvera contabilizar as estrelas antes de começar a narrativa do diário. Ao invés de ressentir-se da mãe, entretanto, ela surpreendeu as páginas perfumadas do caderninho preenchendo-as com um plano para fazer com que sua mãe compreendesse urgentemente seu amor pela chuva e a acompanhasse num passeio molhado.



Por isso agora, enquanto a chuva caía, ela sabia exatamente o que fazer. Primeiro, teria que adiantar-se à resposta da mãe a sua primeira pergunta. Nina, antes do não mais provável, emendaria outra pergunta: “Para que serve a chuva se não podemos nos molhar?” Depois recitaria quatro poesias que ela escrevera julgando-se insone às vinte e três horas da noite anterior. Todas declamando seu amor à chuva. E ainda sem deixar-se interromper pelas respostas nada criativas da mãe, apelaria finalmente para o tom espremido do “por favor minha coleção de pingos de chuva está toda seca, mamãe!” típico das negociações infantis.



A mãe impeliu-se a desviar os olhos até a janela para lamentar, sem mover os lábios, suas horas escassas de descanso enquanto ia sentindo o barulho da chuva enfiar-se em seu corpo orelha adentro. Perguntou-se sobre essa agora de colecionar pingos de chuva, mas não quis tentar investigar e ser interrompida por outro poema. Temeu a gripe, a febre, a pneumonia, os vermes de enxurrada e sua velhice solitária que aparecia um pouco antes na televisão. Mas, desejou fazer Nina feliz quando mirou sua cara carente de alguns dentes. Era uma menina diferente sua Nina: colecionava pingos de chuva, fazia sempre a delicadeza de tentar lhe entender os motivos e interessava-se mais por fenômenos da natureza do que por brinquedos. Quis fazer Nina feliz.



Passaram bem perto de mim porque eu me escondia da chuva sob uma marquise perto do bar Verde e elas desciam a rua da UFU até a sorveteria colorida mais próxima. Andavam mãe e filha de mãos dadas. A outra mão de Nina ocupava-se em carregar um pote de vidro cheio de pingos de chuva para sua coleção. Sua mãe ainda se incomodava um pouco com as gotas que pendiam sem cair da sobrancelha, mas deixava a chuva lavar suas preocupações quando segurava firme a mãozinha de Nina. Sem compreender direito o porquê, a mãe sabia que tudo ficaria bem se Nina estivesse por perto. Era uma menina diferente essa sua: passeava sob a chuva enquanto o resto do mundo ou corria ou se escondia. Quis fazer Nina feliz. Perguntou a ela, antes de atravessar a João Naves: "E aquela moça feito dois de paus embaixo daquela marquise? Será que ela é de açúcar?". Riram largo, ensopadas. Nina estava muito feliz, tanto, que temia ser impossível descrever aquela tarde em seu diário.


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Lascívia

O que penso ao chegar à festa: Não é que eu não goste daqui. Gostaria menos de estar em casa, eis que só o incômodo me acompanha.


Nada disso é por acaso, eu acho. Quando ouço Bob Marley dizer pra eu me levantar e lutar, me pergunto se já fizeram o bastante por mim para que eu possa, portanto, continuar sentada nessa cadeira dobrável contando as horas em anos até tudo isso passar. Assim, como quem pegou o bonde andando, eu vejo os assuntos de adultos não fazerem parte de mim. Não posso pensar como eles porque não tenho medo do futuro nem grandes planos.


Enquanto uma amiga me conta entrecortando considerações parciais acerca da moral da menina que dormiu com seu marido – agora ex – vou me lembrando das vezes em que me encontrei com a tal tipa a quem minha amiga se refere como filha da puta.


A primeira delas foi numa festa cheia de gente da cara ruim. Apresentaram-nos, ela foi simpática (até demais) e eu pedi sorrindo pra ver de perto a tatuagem infantil que ela tinha nas costas da mão. Por causa de sua voz anasalada e chata, confundi antipatia com intolerância, mas sua característica mais evidente não passaria desapercebida a quem a conhecesse: a lascívia. Podia essa palavra ser seu nome se o pobre coitado de seu pai lhe adivinhasse as loucuras antes de tê-la cultivado no mundo. O sentido de dicionário me é impreciso, para mim, vale a imagem de uma mulher de sutiã, calcinha, robe, divã, piteira, à espera. Lascívia é uma mulher que morre de preguiça de viver se veio ao mundo para trepar, oras.


Por mais que tivesse nojo da cara da tipa, que parecia sempre um pouco suja por preguiça e me remetia a esta palavra: “lascívia”, fato é que me admiram essas silhuetas femininas que deixam escapar o escorpiano entre as partes, enquanto nós, de reputação ilibada, andamos por aí com cara de re-putação a-libida, se é que você me entende. Um pouco porque não ligo para esses homens da roda que, tomara, não sejam o rascunho das próximas gerações. E, se não ligo, certa vez, fui capaz de assistir bem humorada à tipa deixar seu queixo cair enquanto meu namorado – hoje ex e um pouco gordo – se aproximava da roda. Ele era bonito.


Permiti que ela me cutucasse e atribuísse ligeira qualquer adjetivo lisonjeiro àquele que me acompanhava, só para explicar de pronto, seu súbito engasgar. Nada do que dissesse, entretanto, poderia isentá-la de seu explícito desejo profano de atirar-se nos braços dele, meu então namorado. Um pouco me divertiu. Não me admiraria que ele chafurdasse de bom grado no divã de Lascívia sentindo-se mais estimulado por agradá-la muito mais que a mim, que achava um pouco desagradável beijá-lo sóbria.


Minha amiga estranhava muito que o discurso um tanto sensível da tipa não condissesse com seu comportamento de filha da puta.


Oras – eu pensava sem deixar-me ouvir – teria sido mais óbvio se ela não tivesse se recusado a crer no que de animalesco escapava das lascívias pupilas da boa bisca: um impulso primitivo dominava a sujeita, que depois carregava sua carcaça ainda faminta pela cidade, como se precisasse antes do colo e conforto de suas vítimas, como se precisasse ela mesma crer que tinha sentimentos, para só depois se alimentar da confiança dos outros. Mas nada nela é tão falso assim se o resto das coisas também for falso. Ou vai me dizer que um relacionamento que se desfaz nesses termos foi legítimo enquanto assinado e benzido em cerimônia?


Ficava eu com dó de Lascívia pensando no que seria a solidão absoluta: foder muito, mas não conseguir amar nunca. É o que dizem por aí. Não que eu quisesse que ela se curasse dessa doença quem sabe inventada pelos românticos. Ficava eu com dó porque nem minha amiga, nem eu, nem Lascívia sabíamos exatamente o que estávamos fazendo cada vez que juramos amor eterno por conta duns orgasmos múltiplos.


Eu olhava a meia dúzia de casais que trocaram seus pares como numa quadrilha enquanto se divertiam sempre nessas mesmas festas dos últimos anos. Algumas pessoas haviam se proclamado casadas cerca de seis vezes e poucas delas tinham mais de trinta. Achava normal. Achava que éramos moléculas em ebulição presas numa panela. Eu mesma só não era vista me mexendo tanto porque me sentia cozida e sem sal.

sábado, 20 de novembro de 2010

Anos-luz de tempo perdido


Num futuro próximo –  dia 19 de setembro de 2011 – eu finalmente cumpriria minha promessa de só pisar em Paris com um grande amor fotógrafo ao meu lado. Depois de ter diversas vezes passado na porta da França e me recusado a entrar no país alegando fobia a franceses, eu finalmente poderia revelar O Grande Segredo para as lentes de meu amado. No topo da Eiffel eu diria: recusei-me a vir à França antes porque esperava por você, meu grande amor fotógrafo que me acompanharia até aqui.


Tiraríamos a foto, eu sentiria fome, iríamos comer queijo com café e depois nos empolgaríamos com a próxima atração, o museu de Louvre.


Enquanto nos aproximássemos da pirâmide de vidro, estranharíamos que na praça seca que a cerca houvessem sido erguidas gigantescas caixas de som. Coincidentemente, chegaríamos pontuais, bem na hora em que elas seriam ligadas.


A coisa toda teria sido montada por artistas neuróticos em protesto à indústria da fofoca que, segundo eles, era a principal responsável pela morte da criatividade humana. Quando as caixas fossem ligadas, vozes de bilhares de pessoas comentariam, em diferentes línguas, a vida de Angelina Jolie. Falariam sobre um boato lançado pelos próprios artistas neuróticos de que Angelina Jolie seria, na verdade, O Vingador e, Brad Pitt, o Mestre dos Magos.


De repente, o som cessaria e um texto seria projetado pelas próprias paredes do Louvre dizendo que, se todos os comentários feitos especificamente para aquela fofoca pudessem ser escritos e impressos, o tempo gasto por uma pessoa adulta para ler o texto resultante poderia ser medido em anos-luz.


Então religariam o som, e eu ouviria nitidamente minha voz em português dizer: eu sempre achei o Brad parecido com o Mestre dos Magos. Teria dito isso no Barolo Point?


A essa altura eu estaria bem desconfiada de que aquilo tudo não passasse de um sonho.


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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Gabo

O termômetro não acusa, mas tenho certeza: estou com febre. Pele ardida, xixi quente, olhos arenosos, vida amarga. Eu sei. É febre. O termômetro diz que não: “trinta e seis graus vírgula oito”. Para os termômetros, eu nunca tenho febre. Sou invencível, imortal, não adoeço, estou sempre ótima.


Putz... eu que sei ... calafrios constantes... diagnósticos imprecisos.


Então é o que? Estresse, angústia, saturno. Febre não é, diz o termômetro.


... vixi ... eu que sei dessas febres... o Gabriel Garcia Márquez sempre me olha com seus olhos de bruxo impregnados de solidariedade existencial para declarar, solenemente, em bom português: isso não é febre, é poesia.


Gabo – digo em réplica: nem fodendo eu vou escrever agora. Estou com febre.


Tinha tempo que não nos falávamos. Ele acende logo um cigarro e vai até a janela ver a cidade escondida atrás do prédio gêmeo da frente. Diz: te falei... ...


... que você conseguiria resolver esse seu problema com o Alfredo.


Resolver? Ele foi embora, me deixou, foi-se – gesticulo cortando meu próprio pescoço. Minha risada ecoa na sala.


Ah Gabo, eu não podia mais ficar saindo por aí carregando um cobertorzinho para me aquecer o frio dos ossos, sabe? Ele, o Alfredo: cismado daquele jeito. Era uma cisma dele, uma coisa que ele tinha que escarafunchar. Ele consigo mesmo sozinho. Fiquei pensando que talvez houvesse uma beirada do mundo sobre a qual a maldição dos Buendía não tenha recaído. Você não acha que Uberlândia tem alma de Macondo? Eu podia me mudar, não sei. Ele queria dar conta do mundo. O Alfredo. Eu mal dou conta de mim. Ele quis ir. Senti que ele queria ir, o deixei ir mais fácil.


Gabriel Garcia Márquez gargalha certa tuberculose para dizer num português inventivo: agora que estás só, vais escrever ou não vais?


Eu, em réplica: sobre o quê? Sobre minha febre? Põe a mão na minha testa, Gabo? Estou com febre, não estou? 

Buraco negro

Não lhe parece uma dor profunda, essa que me ataca? Então a descrevo:


Às quatorze horas e doze minutos, é terça-feira e chove. Tenho umas coisas para resolver, mas encaro quase atônita a tela do computador. Você acaba de ir embora. Percebo um buraco negro se abrindo sob meus pés e não quero olhar para baixo por disparate de ser essa a deixa para eu me afundar, me dissolver, não sei. Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.


Este embriagar-se sem álcool, a lucidez se esvaindo, a vida num tremer nauseabundo, você indo embora, a porta se fechando, meia dúzia de coisas minhas, o resto faltando. Uma música triste passou por isso antes? Antes eu me lembrasse de uma, ou das coisas que tinha para resolver. Antes eu conseguisse me mover e levantar da cadeira sem tropeçar no buraco negro, este abismo: daqui a pouco. O tempo passa e daqui a pouco chega, daqui a pouco, talvez tomar um banho, escrever uma carta, ligar para alguém, ouvir música.


Ninguém morre de amor. Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.


Agora vem essa frase me soar como um pesar. No pescoço, nos ombros, no peito. Talvez eu não sobreviva, embora saiba que vá sobreviver posto que a natureza te fisga, chacoalha, tira suas medidas e te devolve para o mar, te perde. Eis O agora mais cínico mostrando fotos das promessas quebradas como quem diz “desculpe-me, mas não apagamos memórias aqui”.


Às quinze horas e sete minutos eu, debruçada em soluços, ouço o telefone tocar. Não posso, porém, mover-me por medo de que o buraco negro me veja, me engula. Tudo à minha volta já se foi, procuro explicações para o silêncio profundo, a cidade calou-se. Não sei como a cadeira na qual me sento se sustenta. Todo o resto se foi. O telefone toca. Só a campainha do telefone se esforça em me chamar, tanto, que vai se enfraquecendo aos poucos, à distância, ao longe, se cala.


Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.Vou sobreviver, eu sei. Ninguém morre de amor. Talvez eu esteja desmaiando por partes, ou então umas partes do meu corpo não estariam adormecidas. Qualquer movimento me faz suar. Sei que não morri, ninguém morre de amor. Assim é pior porque eu tenho certeza de que estou desmaiando aos poucos.


A violência do maremoto, que vai se formando em meu peito e explode em lágrimas frias, convulsivas, quase como um balde d’água na cara, é a resposta imediata do meu organismo à sua aparição, memória, existência. Você se foi. 


Esta curta frase, que me convoca se me concentro, é como arrancar-me o dedinho: você se foi. Quem sabe a gente se vê por aí. Eu vou sobreviver, você também. Mas não consigo decidir o que fazer daqui a pouco. Beber. Ver um filme. Conversar com alguém. O buraco negro, você sabe, sugou o sentido de tudo isso. 


Mas ninguém morre de amor. Não posso passar o resto da vida de olhos fechados, com medo. Preciso abrir os olhos: respiro fundo, crio coragem e, finalmente, olho para baixo. 


E nunca mais ouviu-se falar de mim.


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Rockeira e suave

Quando criança, eu morava numa fazenda, e, quando algo dava errado, ou pós briga de irmãs, ou contrariada... eu saía andando, andando, andando. Gostava de ir além da gameleira, atravessar a ponte de madeira úmida e encontrar a goiabeira de goiabas brancas e bichadas.


Sou uma dessas pessoas suaves, não sou?


Eu não queria ser. Acho que nunca quis ser nada do que nasci sendo. Eu andava até lá, não pelas goiabas que, embora mais doces, eram quase todas muito bichadas. Eu ia até lá porque achava distante. O mundo ficava longe e imenso.


Eu gostava.


Mas tinha certeza de que, ainda que andasse e andasse e andasse, e andasse ainda um pouco mais, nunca poderia me esconder do que vivia fugindo.


As goiabas brancas eram mais doces que as vermelhas. Via nisso um motivo para bicharem mais fácil. Eu ia lá, comia um pouco da casca, jogava o resto no rego d’água e olhava o horizonte. Queria fugir, mas sabia que poderia andar, andar, andar, andar, andar e ainda assim, estaria dentro de mim. Nasci doce e suave.


As pessoas diziam que eu era uma criança suave, um doce de criança. Diziam que eu me casaria cedo, tão logo me apaixonasse. Mas eu sabia que suas previsões estavam erradas, pois oras! Ora eu desconfiava da vida, ora, do amor. Ora, essa desconfiança me doía e eu desejava me apaixonar logo, casar-me logo, ter filhos logo, para chegar logo na parte em que o ano letivo da vida acaba e a gente morre. Eu pensava assim quando criança.


E pensava nas goiabas brancas: mais doces que as vermelhas, cheias de pontos pretos nas cascas, cheias de bichos ainda mais brancos que sua polpa, apodrecidas, engolidas pelas albinas minhoquinhas inquietas. Perguntava-me qual a razão da existência dos bichos de goiaba se elas eram tão doces e bonitas quando sãs.


Olhava o horizonte e cismava: ainda que eu fosse longe, ainda que eu andasse perseguindo o horizonte, ainda assim, estaria dentro de mim. Por outro lado, estaria longe das pessoas que já iam deixando pontos pretos em minha casca. Pelo menos, eu estaria comigo mesma, seja lá quem eu fosse.  Eu era assim criança, queria fugir. Não queria ser nada daquilo o que diziam que eu era.


E é por isso que acho que nasci rockeira, uma rockeira suave, mas rockeira. E eu não imagino nenhum outro rockeiro que não tenha nascido assim, sem jeito no mundo, desconfiado da vida, desconfiado do amor, ainda mais desconfiado de suas próprias teorias.


Tenho umas opiniões quanto à isto: um rockeiro de verdade: sempre trai o movimento. Porque um rockeiro de verdade sempre está melhor sozinho ou na companhia dos seus – que provavelmente não fazem parte de nenhum movimento. Os rockeiros de verdade, entre si, cagam e andam para coisas diferentes, mas cagam e andam, necessariamente. Inclusive para outros de sua espécie.


Sou suave. Não falo mal das pessoas que estão produzindo alguma coisa quando poderiam estar roubando ou matando. Respeito inclusive o tosco. Respeito ainda mais o bem elaborado, as sinfonias barulhentas da maturidade.


Sou suave. Quase não agrido, mas nasci rockeira, sem jeito no mundo, incomodada. Gosto de barulho. Anuncio antes de desenrolar algumas coisas sobre barulhos aqui.