Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Gabo

O termômetro não acusa, mas tenho certeza: estou com febre. Pele ardida, xixi quente, olhos arenosos, vida amarga. Eu sei. É febre. O termômetro diz que não: “trinta e seis graus vírgula oito”. Para os termômetros, eu nunca tenho febre. Sou invencível, imortal, não adoeço, estou sempre ótima.


Putz... eu que sei ... calafrios constantes... diagnósticos imprecisos.


Então é o que? Estresse, angústia, saturno. Febre não é, diz o termômetro.


... vixi ... eu que sei dessas febres... o Gabriel Garcia Márquez sempre me olha com seus olhos de bruxo impregnados de solidariedade existencial para declarar, solenemente, em bom português: isso não é febre, é poesia.


Gabo – digo em réplica: nem fodendo eu vou escrever agora. Estou com febre.


Tinha tempo que não nos falávamos. Ele acende logo um cigarro e vai até a janela ver a cidade escondida atrás do prédio gêmeo da frente. Diz: te falei... ...


... que você conseguiria resolver esse seu problema com o Alfredo.


Resolver? Ele foi embora, me deixou, foi-se – gesticulo cortando meu próprio pescoço. Minha risada ecoa na sala.


Ah Gabo, eu não podia mais ficar saindo por aí carregando um cobertorzinho para me aquecer o frio dos ossos, sabe? Ele, o Alfredo: cismado daquele jeito. Era uma cisma dele, uma coisa que ele tinha que escarafunchar. Ele consigo mesmo sozinho. Fiquei pensando que talvez houvesse uma beirada do mundo sobre a qual a maldição dos Buendía não tenha recaído. Você não acha que Uberlândia tem alma de Macondo? Eu podia me mudar, não sei. Ele queria dar conta do mundo. O Alfredo. Eu mal dou conta de mim. Ele quis ir. Senti que ele queria ir, o deixei ir mais fácil.


Gabriel Garcia Márquez gargalha certa tuberculose para dizer num português inventivo: agora que estás só, vais escrever ou não vais?


Eu, em réplica: sobre o quê? Sobre minha febre? Põe a mão na minha testa, Gabo? Estou com febre, não estou? 

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