Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Lascívia

O que penso ao chegar à festa: Não é que eu não goste daqui. Gostaria menos de estar em casa, eis que só o incômodo me acompanha.


Nada disso é por acaso, eu acho. Quando ouço Bob Marley dizer pra eu me levantar e lutar, me pergunto se já fizeram o bastante por mim para que eu possa, portanto, continuar sentada nessa cadeira dobrável contando as horas em anos até tudo isso passar. Assim, como quem pegou o bonde andando, eu vejo os assuntos de adultos não fazerem parte de mim. Não posso pensar como eles porque não tenho medo do futuro nem grandes planos.


Enquanto uma amiga me conta entrecortando considerações parciais acerca da moral da menina que dormiu com seu marido – agora ex – vou me lembrando das vezes em que me encontrei com a tal tipa a quem minha amiga se refere como filha da puta.


A primeira delas foi numa festa cheia de gente da cara ruim. Apresentaram-nos, ela foi simpática (até demais) e eu pedi sorrindo pra ver de perto a tatuagem infantil que ela tinha nas costas da mão. Por causa de sua voz anasalada e chata, confundi antipatia com intolerância, mas sua característica mais evidente não passaria desapercebida a quem a conhecesse: a lascívia. Podia essa palavra ser seu nome se o pobre coitado de seu pai lhe adivinhasse as loucuras antes de tê-la cultivado no mundo. O sentido de dicionário me é impreciso, para mim, vale a imagem de uma mulher de sutiã, calcinha, robe, divã, piteira, à espera. Lascívia é uma mulher que morre de preguiça de viver se veio ao mundo para trepar, oras.


Por mais que tivesse nojo da cara da tipa, que parecia sempre um pouco suja por preguiça e me remetia a esta palavra: “lascívia”, fato é que me admiram essas silhuetas femininas que deixam escapar o escorpiano entre as partes, enquanto nós, de reputação ilibada, andamos por aí com cara de re-putação a-libida, se é que você me entende. Um pouco porque não ligo para esses homens da roda que, tomara, não sejam o rascunho das próximas gerações. E, se não ligo, certa vez, fui capaz de assistir bem humorada à tipa deixar seu queixo cair enquanto meu namorado – hoje ex e um pouco gordo – se aproximava da roda. Ele era bonito.


Permiti que ela me cutucasse e atribuísse ligeira qualquer adjetivo lisonjeiro àquele que me acompanhava, só para explicar de pronto, seu súbito engasgar. Nada do que dissesse, entretanto, poderia isentá-la de seu explícito desejo profano de atirar-se nos braços dele, meu então namorado. Um pouco me divertiu. Não me admiraria que ele chafurdasse de bom grado no divã de Lascívia sentindo-se mais estimulado por agradá-la muito mais que a mim, que achava um pouco desagradável beijá-lo sóbria.


Minha amiga estranhava muito que o discurso um tanto sensível da tipa não condissesse com seu comportamento de filha da puta.


Oras – eu pensava sem deixar-me ouvir – teria sido mais óbvio se ela não tivesse se recusado a crer no que de animalesco escapava das lascívias pupilas da boa bisca: um impulso primitivo dominava a sujeita, que depois carregava sua carcaça ainda faminta pela cidade, como se precisasse antes do colo e conforto de suas vítimas, como se precisasse ela mesma crer que tinha sentimentos, para só depois se alimentar da confiança dos outros. Mas nada nela é tão falso assim se o resto das coisas também for falso. Ou vai me dizer que um relacionamento que se desfaz nesses termos foi legítimo enquanto assinado e benzido em cerimônia?


Ficava eu com dó de Lascívia pensando no que seria a solidão absoluta: foder muito, mas não conseguir amar nunca. É o que dizem por aí. Não que eu quisesse que ela se curasse dessa doença quem sabe inventada pelos românticos. Ficava eu com dó porque nem minha amiga, nem eu, nem Lascívia sabíamos exatamente o que estávamos fazendo cada vez que juramos amor eterno por conta duns orgasmos múltiplos.


Eu olhava a meia dúzia de casais que trocaram seus pares como numa quadrilha enquanto se divertiam sempre nessas mesmas festas dos últimos anos. Algumas pessoas haviam se proclamado casadas cerca de seis vezes e poucas delas tinham mais de trinta. Achava normal. Achava que éramos moléculas em ebulição presas numa panela. Eu mesma só não era vista me mexendo tanto porque me sentia cozida e sem sal.

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