Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ressaca

Vontade de vomitar. Nem abrir os olhos quero. Nem ver você ao meu lado. Que bom: ninguém está. O sol deve estar mais escuro hoje. Só pode. Deve estar. Do que me lembro? De que abrir as cortinas vai doer um tanto bom. De que meu cérebro é como a esponja seca, pequena, rígida, quebrável. De água, do que preciso, é água. Sonhava nadar em piscinas, ou não era com isso que eu sonhava? Do que me lembro? Do que a dor no pescoço não me deixa lembrar? Dos travesseiros mal arranjados, nem era preciso três, e foi porque não havia ninguém... bem, deixa pra lá. Como poderia chegar ao copo d’água? Ou alcançar o isqueiro, o maço, onde será que tudo está? Não. Preciso de uma sopa de fubá. Olá, momento recorrente, como não? Como não voltar? Não foi isso o que quis dizer. Não foi isso. Ai, meu deus, não foi isso o que quis dizer! Bem, deixe pra lá... Ninguém desligou o alarme? Ninguém desligou o alarme, há, há. Não, não há alarme, alarme onde? Ainda assim, não para de tocar. O telefone. – Ninguém morreu, a polícia nem vai notar. A polícia, o vaso, ráh. O vaso, o cinzeiro, a descarga que não consigo acionar. Esse momento recorrente. – Que nojo! Vontade de vomitar.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Um daquele despenhadeiro

Eu me lembro daquela menina que me chamou de covarde
que era só pular naquela tarde
daquele despenhadeiro

eu era velha, ela era jovem
eu me calei sem alarde
e me escondi atrás de um rochedo

hoje vejo, hoje me lembro
ela altiva, sua boca enorme
cuspindo verdades entre salivas
enquanto eu saía de fino
mal bem via a saída

eu era velha, ela era jovem
ela, altiva, sua boca, enorme

hoje vejo, hoje entendo
ela agora, sua boca muda
mastigando tristezas entre o silêncio
do que ela fora outrora

Naquela tarde, naquele dia
eu bem que poderia
ter dito a verdade
sobre o despenhadeiro

Ora, se eu era covarde
Era covarde àquela hora
Porquanto já houvesse sido um dia
Tanto quanto ela, corajosa

Mas a coragem não se perde aos poucos
(como se pensa)
nem dia após dia
(como se rememora)
vai-se de uma tacada inteira embora
de quem sobrevive à queda
de um daquele despenhadeiro

mas não vai só, é verdade
leva consigo também o medo

Ah, eu bem que poderia
ter dito a verdade de um só jeito
mas a mim, ela era surda
e só ouvia ao chamado do pulo
só ouvia ao chamado da glória
da sobrevida ao despenhadeiro

Hoje vejo e me pergunto
se a coragem não se fez para se perder
ou se não, não se veria nunca
que, o que a vida pede,
é o que pede um daquele despenhadeiro:
nem medo, nem despeito
mas respeito.

Eu pensei, eu não disse
Para não desperdiçar palavras sábias
que passam ao largo dos ouvidos jovens

Eu não pulei, você, menina
Pulou bem, alto, para cima
e ouviu vibrar em queda os conselhos
da garganta do despenhadeiro

Levou sua coragem, não foi?
Mas também levou seu medo
Quiçá não chame mais de covarde ou pura coragem
Quem só merece respeito

A velha aqui, a vida,
ai e aquele...
ai um daquele despenhadeiro!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Manolo

Não sei exatamente quando passei a enxergar todas as pessoas como borrões de tintas coloridas transparentes. Estava tão confusa e cega, mas não pediria ajuda a um borrão de tinta colorida transparente, que eram as pessoas para mim. Conseguia ver o contorno das árvores, olhava principalmente para o céu, conversava com bichos, mas nada que pudesse me ajudar a entender um mundo despido de gente, pois para mim, as pessoas e suas coisas passaram a não passar de manchas no horizonte.

Quando se aproximavam de mim, eu sentia o suor verter de meu umbigo que não entendia nada. Quando se aproximavam, eu tinha a nítida impressão de que me pegariam pela mão, me levariam para suas casas e tentariam me fazer caber em seus potes. E essa foi a primeira pista que tive, que talvez eu fosse feita de água doce e por isso achassem que, a qualquer momento, eu serviria para alguma coisa. No entanto, mesmo que me estocassem em seus potes – para seus momentos de nervosismo e apreensão – eu escorreria, secaria, sumiria. Ainda que tentassem, ainda que eu tivesse medo, não era de mim que se alimentariam os borrões. Minha própria imagem no espelho não era clara, uma pista contrária, de que eu talvez não passasse de um borrão, só isso.

Um dia sentei-me em uma praça e separei o dia para entender melhor. Tive tanto medo, estava tão confusa e cega, tive a impressão de ver a chuva lavar as cores de cada borrão, e cada borrão se tornou cinza. Chorei. Uns borrões cinza se aproximaram para me ajudar. Tive tanto medo. Fugi para a Bolívia.

O clima nem quente nem frio e o ar rarefeito fizeram só piorar a agonia. O borrão de uma velha chola falando de suas tristezas políticas e o tanto que se amontoavam naquelas manchas coisas e idéias, tudo sem nenhum contorno. Eu era agora confusa, cega e tonta, conversava com pedras, fotografava rachaduras, disfarçava-me de qualquer coisa para não parecer-me comigo: um borrão cinza. Comprei uma porção de vestidos coloridos, brincos, pulseiras, alpagartas, mas postos em mim, perdiam todas as cores, todos os contornos, e eu inteira era só um borrão cinza.

Um dia sentei-me à beira de uma ponte e separei o dia para entender melhor. Aproximei-me de seus limites para ver melhor o rio e imaginei que se saltasse, sendo mancha, não se ouviria um barulho diferente do barulho de umas gotas se dissolvendo no todo. Uma criança gritou em espanhol: mãe! Ela vai pular! E olhando para trás para vê-la, eu a vi. Olhos de amêndoas, bochechas gordas, cabelos engordurados, empacotado em muitas roupas: Manolo. Cruzei ao contrário a ponte contando à mancha que agarrava a mão de Manolo que seu filho havia me salvado a vida. Depois voltei para o Brasil.

Desde então vejo crianças, nada muito além disso, umas raras são do meu tamanho, só nelas vejo contornos. De alguma forma o que me escapa talvez me seja preciso e me pergunto se um anjo não me protege dos contornos hediondos, me pergunto se aos contornos hediondos eu haveria sobrevivido. Pelo menos os borrões retomaram suas cores e eu nem preciso mais usar tantos brincos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Espelhos

Nem sempre as pessoas estão feitas de carne e osso. Umas vezes estão feitas duma cara feia que faz seu cheiro ficar ruim, sua boca entortar para baixo, não sei, umas vezes as pessoas parecem estar feitas dum troço inominável, capetoso.

Mas nem sempre foram assim. Já foram feitas de carne e osso, imagino. Passei a imaginar que sim depois do dia em que presenciei uma das pessoas mais gentis ter sua boca entortada, daquele jeito, para baixo. Cismou de ser a pessoa mais infeliz do mundo, quis fazer o resto do mundo infeliz também. Era pra não se sentir tão sozinha, nada de mal. Eu é que estranhei.

O pessoal da psicologia já havia me dito que podia ser espelho, então podia ser que a boca se entortando fosse minha, e o resto do que eu estivesse vendo não condissesse. Na época, eu andava mais para as práticas do que para as sabedorias, então, só havia um jeito de saber a verdade: enfiei-lhe um soco nas fuças, se fosse espelho, oras, se quebraria.

Mas não é que depois do ocorrido minha boca mesmo entortou-se para cima num sorriso que durou um ano e meio? A ausência daquela presença fétida era um alívio. Não sei. Não sei. Alguma coisa nas teorias psicológicas das quais tentei extrair qualquer cura retirou a coerência dos meus textos.

O que me parece mais certo é que, a certa altura, quando se deixa ser tomado pelos vertiginosos sentimentos de armagura, toda a carne e todo o osso do corpo, apodreçam. Os urubus metafísicos que circundam essas almas, certamente atraídos pelo mau cheiro, podem ser vistos a olhos nus por outras almas, digamos assim, mais sensíveis... mas aí, sempre chega um da psicologia com essa história mal contada de espelho, e as almas, digamos assim, mais sensíveis, são capazes de perder horas e mais horas tentando encontrar seus próprios defeitos. Bobagem, perda de tempo. Vale mais, logo e pronto, socar as fuças dessas espécies de zumbis. O alívio é imediato e certeiro.