Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Manolo

Não sei exatamente quando passei a enxergar todas as pessoas como borrões de tintas coloridas transparentes. Estava tão confusa e cega, mas não pediria ajuda a um borrão de tinta colorida transparente, que eram as pessoas para mim. Conseguia ver o contorno das árvores, olhava principalmente para o céu, conversava com bichos, mas nada que pudesse me ajudar a entender um mundo despido de gente, pois para mim, as pessoas e suas coisas passaram a não passar de manchas no horizonte.

Quando se aproximavam de mim, eu sentia o suor verter de meu umbigo que não entendia nada. Quando se aproximavam, eu tinha a nítida impressão de que me pegariam pela mão, me levariam para suas casas e tentariam me fazer caber em seus potes. E essa foi a primeira pista que tive, que talvez eu fosse feita de água doce e por isso achassem que, a qualquer momento, eu serviria para alguma coisa. No entanto, mesmo que me estocassem em seus potes – para seus momentos de nervosismo e apreensão – eu escorreria, secaria, sumiria. Ainda que tentassem, ainda que eu tivesse medo, não era de mim que se alimentariam os borrões. Minha própria imagem no espelho não era clara, uma pista contrária, de que eu talvez não passasse de um borrão, só isso.

Um dia sentei-me em uma praça e separei o dia para entender melhor. Tive tanto medo, estava tão confusa e cega, tive a impressão de ver a chuva lavar as cores de cada borrão, e cada borrão se tornou cinza. Chorei. Uns borrões cinza se aproximaram para me ajudar. Tive tanto medo. Fugi para a Bolívia.

O clima nem quente nem frio e o ar rarefeito fizeram só piorar a agonia. O borrão de uma velha chola falando de suas tristezas políticas e o tanto que se amontoavam naquelas manchas coisas e idéias, tudo sem nenhum contorno. Eu era agora confusa, cega e tonta, conversava com pedras, fotografava rachaduras, disfarçava-me de qualquer coisa para não parecer-me comigo: um borrão cinza. Comprei uma porção de vestidos coloridos, brincos, pulseiras, alpagartas, mas postos em mim, perdiam todas as cores, todos os contornos, e eu inteira era só um borrão cinza.

Um dia sentei-me à beira de uma ponte e separei o dia para entender melhor. Aproximei-me de seus limites para ver melhor o rio e imaginei que se saltasse, sendo mancha, não se ouviria um barulho diferente do barulho de umas gotas se dissolvendo no todo. Uma criança gritou em espanhol: mãe! Ela vai pular! E olhando para trás para vê-la, eu a vi. Olhos de amêndoas, bochechas gordas, cabelos engordurados, empacotado em muitas roupas: Manolo. Cruzei ao contrário a ponte contando à mancha que agarrava a mão de Manolo que seu filho havia me salvado a vida. Depois voltei para o Brasil.

Desde então vejo crianças, nada muito além disso, umas raras são do meu tamanho, só nelas vejo contornos. De alguma forma o que me escapa talvez me seja preciso e me pergunto se um anjo não me protege dos contornos hediondos, me pergunto se aos contornos hediondos eu haveria sobrevivido. Pelo menos os borrões retomaram suas cores e eu nem preciso mais usar tantos brincos.

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