Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Buraco negro

Não lhe parece uma dor profunda, essa que me ataca? Então a descrevo:


Às quatorze horas e doze minutos, é terça-feira e chove. Tenho umas coisas para resolver, mas encaro quase atônita a tela do computador. Você acaba de ir embora. Percebo um buraco negro se abrindo sob meus pés e não quero olhar para baixo por disparate de ser essa a deixa para eu me afundar, me dissolver, não sei. Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.


Este embriagar-se sem álcool, a lucidez se esvaindo, a vida num tremer nauseabundo, você indo embora, a porta se fechando, meia dúzia de coisas minhas, o resto faltando. Uma música triste passou por isso antes? Antes eu me lembrasse de uma, ou das coisas que tinha para resolver. Antes eu conseguisse me mover e levantar da cadeira sem tropeçar no buraco negro, este abismo: daqui a pouco. O tempo passa e daqui a pouco chega, daqui a pouco, talvez tomar um banho, escrever uma carta, ligar para alguém, ouvir música.


Ninguém morre de amor. Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.


Agora vem essa frase me soar como um pesar. No pescoço, nos ombros, no peito. Talvez eu não sobreviva, embora saiba que vá sobreviver posto que a natureza te fisga, chacoalha, tira suas medidas e te devolve para o mar, te perde. Eis O agora mais cínico mostrando fotos das promessas quebradas como quem diz “desculpe-me, mas não apagamos memórias aqui”.


Às quinze horas e sete minutos eu, debruçada em soluços, ouço o telefone tocar. Não posso, porém, mover-me por medo de que o buraco negro me veja, me engula. Tudo à minha volta já se foi, procuro explicações para o silêncio profundo, a cidade calou-se. Não sei como a cadeira na qual me sento se sustenta. Todo o resto se foi. O telefone toca. Só a campainha do telefone se esforça em me chamar, tanto, que vai se enfraquecendo aos poucos, à distância, ao longe, se cala.


Não posso olhar para baixo, penso. Fecho os olhos firmemente.Vou sobreviver, eu sei. Ninguém morre de amor. Talvez eu esteja desmaiando por partes, ou então umas partes do meu corpo não estariam adormecidas. Qualquer movimento me faz suar. Sei que não morri, ninguém morre de amor. Assim é pior porque eu tenho certeza de que estou desmaiando aos poucos.


A violência do maremoto, que vai se formando em meu peito e explode em lágrimas frias, convulsivas, quase como um balde d’água na cara, é a resposta imediata do meu organismo à sua aparição, memória, existência. Você se foi. 


Esta curta frase, que me convoca se me concentro, é como arrancar-me o dedinho: você se foi. Quem sabe a gente se vê por aí. Eu vou sobreviver, você também. Mas não consigo decidir o que fazer daqui a pouco. Beber. Ver um filme. Conversar com alguém. O buraco negro, você sabe, sugou o sentido de tudo isso. 


Mas ninguém morre de amor. Não posso passar o resto da vida de olhos fechados, com medo. Preciso abrir os olhos: respiro fundo, crio coragem e, finalmente, olho para baixo. 


E nunca mais ouviu-se falar de mim.


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