Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nina tem sete anos (um conto no meio do dia)

As janelas estão abertas. Nina sente o cheiro: é chuva. Ela arregala os olhos, deixa a boca abrir num som oco, depois, dá meio sorriso: vai chover. Nina mal pode acreditar.



Arrasta-se atrás do sofá aonde sua mãe (por agora) se esquece (por querer) da vida. Alcança a janela e a fecha, para depois, na ponta dos pés enfiar o nariz nos entremeios que espirram água da chuva. Aperta os lábios enquanto cisma consigo que ninguém - em parte alguma - da galáxia - poderia sentir mais amor pela chuva do que ela. Cheira a chuva. Suspira. Então, rola como um tatu-bola invisível num movimento calculado de instante para emergir como uma sereia bem no rumo dos olhos de sua mãe que deverá responder à pergunta: “Me deixa brincar lá embaixo?”



Nina notou que, nas últimas dez vezes que choveu, sua mãe renovou a promessa de deixá-la brincar lá na chuva adiando-a para uma próxima vez com a maior cara de pau. Sabe disso porque tem escrito em seu diário diariamente, como houvera prometido à tia Alícia logo depois de desembrulhar o caderninho rosa no dia de seu aniversário de sete. Nina acha importante honrar suas promessas. Ontem, antes de dormir, tinha contado em voz alta as negativas da mãe ao seu pedido de brincar na chuva. Marcava os dias amputados da diversão que mais amava, desenhando uma estrela verde no canto superior da folha e amargando as promessas quebradas da mãe.



Ontem, como passasse o dia todo num ameaçar de chuva constante, Nina resolvera contabilizar as estrelas antes de começar a narrativa do diário. Ao invés de ressentir-se da mãe, entretanto, ela surpreendeu as páginas perfumadas do caderninho preenchendo-as com um plano para fazer com que sua mãe compreendesse urgentemente seu amor pela chuva e a acompanhasse num passeio molhado.



Por isso agora, enquanto a chuva caía, ela sabia exatamente o que fazer. Primeiro, teria que adiantar-se à resposta da mãe a sua primeira pergunta. Nina, antes do não mais provável, emendaria outra pergunta: “Para que serve a chuva se não podemos nos molhar?” Depois recitaria quatro poesias que ela escrevera julgando-se insone às vinte e três horas da noite anterior. Todas declamando seu amor à chuva. E ainda sem deixar-se interromper pelas respostas nada criativas da mãe, apelaria finalmente para o tom espremido do “por favor minha coleção de pingos de chuva está toda seca, mamãe!” típico das negociações infantis.



A mãe impeliu-se a desviar os olhos até a janela para lamentar, sem mover os lábios, suas horas escassas de descanso enquanto ia sentindo o barulho da chuva enfiar-se em seu corpo orelha adentro. Perguntou-se sobre essa agora de colecionar pingos de chuva, mas não quis tentar investigar e ser interrompida por outro poema. Temeu a gripe, a febre, a pneumonia, os vermes de enxurrada e sua velhice solitária que aparecia um pouco antes na televisão. Mas, desejou fazer Nina feliz quando mirou sua cara carente de alguns dentes. Era uma menina diferente sua Nina: colecionava pingos de chuva, fazia sempre a delicadeza de tentar lhe entender os motivos e interessava-se mais por fenômenos da natureza do que por brinquedos. Quis fazer Nina feliz.



Passaram bem perto de mim porque eu me escondia da chuva sob uma marquise perto do bar Verde e elas desciam a rua da UFU até a sorveteria colorida mais próxima. Andavam mãe e filha de mãos dadas. A outra mão de Nina ocupava-se em carregar um pote de vidro cheio de pingos de chuva para sua coleção. Sua mãe ainda se incomodava um pouco com as gotas que pendiam sem cair da sobrancelha, mas deixava a chuva lavar suas preocupações quando segurava firme a mãozinha de Nina. Sem compreender direito o porquê, a mãe sabia que tudo ficaria bem se Nina estivesse por perto. Era uma menina diferente essa sua: passeava sob a chuva enquanto o resto do mundo ou corria ou se escondia. Quis fazer Nina feliz. Perguntou a ela, antes de atravessar a João Naves: "E aquela moça feito dois de paus embaixo daquela marquise? Será que ela é de açúcar?". Riram largo, ensopadas. Nina estava muito feliz, tanto, que temia ser impossível descrever aquela tarde em seu diário.


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