Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

por Alfredo: De longe

Conheço de longe esses seres humanos que deixam escapar lágrimas em plena luz do dia. Esses olhos que estão sempre vazando. Por mais que aquela garota tivesse uma postura cheia de coisas: bolsas, sapatos, brincos coloridos, cabelos descolados: não raro, era vista por aí, descalça, com os olhos vazando. Porque, no fundo, era tímida e nunca teve olhos verdes. Nunca mesmo. As perucas, as pulseiras, nem era isso seu legado. Tinha um jeito outro de compreender melhor as coisas em silêncio. Como dentro de uma floresta em si mesma, como se fosse pecado deixar que se visse cachoeiras ali, ainda que de relance. Isso também explicava os saltos, os cílios postiços e as unhas enormes.

Eu, entretanto, um dia, passando, vi! suas cachoeiras. As outras coisas sumiam como feitiço quando estávamos juntos e ela era, às vezes, doce e nua. Dizia que eu podia ficar à vontade, contava piadas e ensinava algumas boas receitas para curar-me a garganta. Aí tinha os cabelos amarrados e usava uma camiseta velha, já que nem era tão garota assim. Ou era mais, quando estávamos juntos e ríamos bobos daquelas piadas. Pela manhã, sentia-me recebendo os fluidos mais frescos de seu corpo com(o) café passado na hora.

Tanta generosidade, entretanto, se perdeu a caminho do inverno, quando ela hibernou em uma tristeza carrancuda e mandou que eu me virasse. Eu tive que ir, fazer minhas coisas sozinho: guardar a louça, lavar a roupa, por a toalha para secar. Não bastasse a solidão de vê-la distante, tive ainda que aprender truques culinários para adoçar-lhe os lábios pelo menos. E quis eu mesmo, desde a massa até o recheio, fazer, sem ajuda, tortinhas de morango. Foi a casa ir se impregnando do mimo para ela se levantar e chegar à cozinha com os olhos rasos d’água.

Agora é primavera, mas eu já sabia antes, porque tenho o talento de conhecer de longe esses seres humanos cujos olhos estão sempre vazando. Ternura. E apreciá-los, quando é preciso, de longe.

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