Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

sábado, 15 de janeiro de 2011

A casa dos meninos. (1)


Eva

Passei 30 minutos tentando decidir se almoçaria ou não na casa dos meninos. A Eva havia me convidado por telefone durante uma gritaria de gente pedindo para que passassem logo o telefone. Uma gente impaciente querendo falar comigo.

Eu tinha cólicas dilacerantes àquela hora, houvera sido dominada inteira daquela emoção que vem do ventre para fazer a vida toda parecer um grande incômodo, uma cólica terrível, filha da puta de d.i.u. E a febre se misturando ao enjôo: TPM.

Talvez ver essa criançada que fugiu de casa no natal, fosse bom para espairecer um pouco, abrir os caminhos fechados. Ao mesmo tempo, meu corpo me oprimia, eu já andava me contorcendo. Maldita cólica, maldito d.i.u.

Abri minha bolsa em busca da frasqueira de remédios e não estava lá. Era incrível, já me havia me esquecido de um tudo naquela casa de gente tórrida, mas era a primeira vez que deixava passar a enorme frasqueira colorida.

Era óbvio que eu perdera o direito de escolha: tinha que ir até a casa dos meninos buscar minha frasqueira: lá estava guardado o delicioso buscopan composto. Tomaria logo dois. Mas não sei. Talvez fossem os dias nublados, chuvosos, estranhamente mais brancos e brilhantes, doloridos na retina, na rotina, no mau-humor, no bico da cara fechada. Talvez fosse TPM. Não sei. Entrei no carro a contragosto pensando que a situação toda havia se decidido sem meu aval o que é sempre cercado de uma desconfiança ressentida da vida: então é assim? eu não mando nada não? Mas eu não podia decidir meu almoço na hora da janta. 

Eva veio abrir o cadeado do portão entrelaçado em bucha, com seu cabelão que ostenta cachos nas pontas, enrolada na saia longa que já é segunda pele alimentando também os ácarozinhos de estimação. Abriu seu sorriso de convinhas e soltou: “tamo esperando ôce pra jantá muié” que é uma senha nunca substituída por “almoçá”. Os meninos são seres notívagos: só jantam: mesmo ao meio dia.

Nunca consegui chamar a casa deles de caverna. Chamo de casa dos meninos. Mas as paredes estão cobertas dos desenhos da Eva: florestas, cachoeiras, máscaras e pássaros, muitos pássaros. Há quem não veja conexão (o Meca é um deles), há quem não desembrulhasse nunca a Eva. Mas vê-se de longe que ela tem um distúrbio secreto que deverá ainda fazer muitos homens se derreterem para sempre. 

Por hora há o Maurício, de quem não falarei, não por implicância, mas por saber que as horas embora passem mais devagar para Eva, passam também, como todas as horas passam. Ela contou que havia feito três tatuagens bem pequenas no tornozelo: um sol, uma lua e o número três. Me mostrou ainda com o plástico cobrindo as feridinhas. Acendeu um cigarro para arrastar ainda mais suas falas: “cada tatu tem sua poesia”.  Por que o número três? perguntei. Ela disse que pensou noites e noites a fio e, numa dessas noites entrou pela janela um vento, como uma revelação. Ela então entendeu. A lua precisava do sol, a noite precisava do dia, o equilíbrio, entende? Ela tinha que tatuar o sol e a lua.

E o três, afirmei. “O que?”, ela perguntou. O três, sua maluca, e o três? Qual o significado?

_ Ah. Fazer tatuagem em número par dá azar.

Um comentário:

sueli aduan disse...

Olá Cassandra, desculpe-me não comentar sobre o texto, mas quero voltar com calma e 'saborear" outros tb, certo?

Como seguir o blog? Não achei "seguidores".

abraços
sueliaduan