Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

sábado, 22 de janeiro de 2011

A casa dos meninos (2)

Meca

Onde está a poesia do Meca? Parece que caiu inteira no chão depois do primeiro amor. Muito falou-se sobre isso: “o Meca não sabe amar”. E quem é que sabe? eu me perguntava em silêncio. Não queria quebrar aquele momento mágico em que nos auto-admirávamos tanto por conseguirmos ser condescendentes com as terríveis travessuras de Meca, ainda que não houvesse ali ninguém menos travesso.

Ele não chegava logo para jantar, por isso nos reunimos no quintal, sob a mangueira dos deuses. Era uma necessidade de avaliar a conduta do Meca na última noite. Mas tudo displicentemente enquanto nossos estômagos vazios tornavam-se pouco a pouco mais importantes. O sol aquecia por trás as nuvens de chuva que enchiam o dia de mormaço. O Meca não chegava logo, reclamavam os mais impacientes (entre os quais, claro, Ravel).

Na última festa grátis da UFU, um bêbado e desfigurado Meca teria falado meia dúzia de merdas para Eva que, na hora, só fez espremer sua própria testa com o dedo indicador e o dedão, fazendo cara de desentendida para o Maurício. Assim Eva contou: entre outras sandices, Meca teria pedido que Maurício se protegesse daquela alma perniciosa: a Eva.

Era de dar dó. Todo mundo concordou.

Pouco depois Meca chegou se aproximando da roda.

Sua figura um tanto mais franzina tinha mãos nos bolsos e chinelas franciscanas. Ravel ameaçou apelidá-lo de Barbicha. O moço bem apessoado do Direito aparecia agora com os pedaços do que tinha sido um dia, nas mãos. A estiagem dos barbitúricos, aquele seco momento do dia em que se levanta sóbrio e infeliz, aquilo nunca foi para os jovens que são fracos e inocentes, aquilo se custa suportar, a força de um estômago tremendo de medo da própria fome de se alimentar de morte, ver a fome ir ficando maior que o medo, ver a mão acender o cigarro, se ver estragando tudo.

O esforço enorme que Meca fazia para suportar aquele enjôo nos fez respirar mais fundo quase para lhe tomar o cansaço. O cabelo molhado, a barba crescida, as roupas largas, a presença de Eva e seus desenhos indecifráveis. Era como se não houvesse no Meca mais nada a queimar e suas cinzas tivessem chegado para jantar conosco. Ravel convidou: bóra comer pelo amor de deus.

A meia dúzia de gente foi abandonando mais triste a mangueira para se acomodar na cozinha espaçosa e precária. Eva e Meca ficaram. Ele pediu desculpas. Citou umas frases da própria Eva, incluindo uma dita no alto daquela mangueira, que ele tinha que cuidar melhor de sua cabeça, que era a única coisa que ele tinha e que a coisa toda andava muito mal. Mas que ele ia tentar, ia deixar Eva em paz.

Ambos se saciaram com três garfadas. Eu me fartei de salada com limão. Alface e rúcula colhidas do quintal. Ravel já lavava a louça.

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