Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cazuza

E se eu procuro e não encontro a explicação? Espero em pé, debaixo de chuva, e duas horas depois o ônibus não passa? Caminho dois dias e duas noites e, ao chegar, igreja não há? Então você, que cataloga o sentimento alheio com a propriedade de quem vive sentimento de fora, me diga o que são essas manchas em minha pele, embaixo das tatuagens invísiveis. Um pouco de espuma na boca, um pouco de grito na garganta, antes assim só sitomas, antes acabem em lágrimas que em morte, você diz. Eu discordo por instantes, aqueles em que penso no alívio. Chego em casa rasgada, com dois pedaços de mim esquecidos numa calçada qualquer, você me pergunta o que foi, eu digo que não foi nada com tristeza íntima. Então cadê seus olhos se esses não enxergam mais nada?

Mudo os móveis de lugar, sentada no sofá, recebo a visita do mesmo beija-flor. Por minutos inteiros ele se prostra em minha frente com seus olhos de pássaro num curioso vôo imóvel. Eu deveria sorrir, sua presença deveria me agradar. Fito-o com meus olhos de gente e coisa que não consigo é sorrir. Dia e outro ele me visita como quem quer me desvendar pelo cheiro, dizer o que sou. Apenas para participar de seu vôo, arregalo meus olhos e o espero que me compreenda. Nunca há nada, um fisgo, uma pinta, um algo que assim o diga: que agora sim, sabe porque volta. E a cada retorno, vai o beija-flor ficando mais distante, menos arregalo os olhos, até sua presença de beleza do dia virar um incômodo. A esperança de que ele soubesse mingua. Ele não sabe, voa apenas, pára pra respirar e fita o vazio, meu cheiro não sente, não sou flor. É para mim o mesmo que o pássaro sobre a penteadeira, sou para ele o mesmo que uma sombra às três. Ainda que voltasse todos os dias, com suas pequenas asas verde-escuro brilhante, não me faria sorrir.

Caro beija-flor, sou agora um fiapo só, não entendo o que você quer dizer, assim, é porque você não me diz nada. No natal do ano passado eu pensei no dissabor das coisas que vão e vem, passam sempre, pensei que o presidente está errado, pensei em mudar de profissão, mas não pensei em você.


Esse desejo não confesso, nossas sete vidas entrelaçadas por exatos sete erros, por tudo que a gente não disse, uns falsários. Num desses botecos de salgado, numa dessas cadeiras que se fecham, a gente se cruza e discute uma centena de coisas quando por dentro, meu silêncio é ainda maior, eu mal me importo, sei que o curso segue, nada se desvia, nada muda de uma hora pra outra. Quando a tristeza explode, eu respiro mais difícil, ainda assim, respiro bem, obrigada. Você gesticula meia dúzia de membros, tem tremeliques, tiques nervosos, uma vida inteira pela frente pra se cansar de si mesmo. 

Eu desejo o silêncio que me corrói por dentro, ai, não ter resolvido todos os impasses, não ter feito tudo que eu podia, toda a falta que fez a tal proatividade. Você me traiu, eu penso, você me deixou, eu choro, você me abandonou, eu digo, você me ensinou que não há como voltar atrás, o tempo não perdoa, bem bem, esquece. 

Eu não esqueci. Então me deixe ser só às 3 da manhã, no sono mais profundo, zoando por entre os mananciais que já me alimentaram quando eu cheguei bem perto do abismo e só não pulei porque tive fome. Deixe-me ser só quando as luzes da cidade me impressionam e esboço o grito que volta no eco do vazio imenso. Deixe-me vestir a armadura grossa de pêlos finos para proteger meu muito efêmero do frio da eternidade falha. Eu penso naquelas manhãs alaranjadas pelas cortinas, você me contava piadas, eu ria chorosa, aquelas noites imensas, a felicidade plena que quis eternizar. Eu penso nas tantas vezes que deixamos de nascer e em todas as vezes em que me esforcei pra te amar menos. 

... E de supetão o beija-flor estatala-se em minhas costas. Só me faltava essa! Um pássaro que me visita mas não me enxerga.


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