Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Em Vauxhall nunca para de ventar




Eu gosto do contorno das palavras, dos desenhos que criam, das histórias que contam. E a interpretação de todas elas é sempre uma coisa tão solitária, tão dependente de tudo que já fui um dia. As histórias diferentes que contamos lendo as mesmas frases, nossa própria arte. O tom de voz, a cor da pele, tudo não passa de um grande jogo de espelhos. Jogo essas coisas confusas aqui: interprete você. As ideias que andavam corridas, escondidas, sumidas, o caos da minha memória confusa, tudo serve, me acalma.

***

Estou sempre em meio àquela ventania da Vauxhall, sempre estou ali, querendo pegar o ônibus errado. Eu dizia que aquele era um lugar mágico - que é ser assombrado ao contrário - e quando eu digo que é mágico, mágico fica sendo na minha memória: em Vauxhal nunca para de ventar.

Não é preciso que eu conte isto aos outros: que não acho que minha vida é outra coisa senão uma história. Os outros desconfiam que eu seja assim, uma pessoa avoada, perdida na pintura diária da sua vida. Mas não deixei de acreditar no que os outros dizem, apenas nunca estou olhando para eles.

As frases de sempre enfeitando conversas amenas, me sento numa cadeira tão frágil, tão frágil, de boteco, branca, de metal. O velho nos serve cerveja, comenta que nunca viu uma mulher beber caipirinha com tanta desenvoltura. O velho é tão frágil, tão frágil. São essas as finas estruturas que criamos para desenhar as cidades: a rua de asfalto ruim e esburacado, os postes ostentando seus pesados e sujos fios, os meio-fios quebrados das calçadas cobertas de mesas dobráveis, tão frágeis, tão frágeis. Bastaria um pé de vento, eu acho, tudo iria pelos ares.

A música ruim começa a tocar e qualquer silêncio é impossível. Algumas mulheres me parecem hienas enfeitadas. Qualquer silêncio parece impossível mas um pé de vento seria o bastante. A criança que tropeça e arranha os joelhos dá-se conta de sua fragilidade. Chora alto porque sabe que um pé de vento seria o bastante. As hienas seguem irrepreensíveis sem nunca perceber o quão ridículas são suas pequenas superioridades. Não importa com que pedaço de pano se cubram, há sempre esse cheiro de gente nova repetindo ideia velha. O mofo, o embolorado. As vozes ricocheteiam entre chão e teto, sobre o teto, escuras nuvens se trombam, troveja. Torço o pescoço para ver um pequeno redemoinho se formar. Um pé de vento seria o bastante.

Cada vez que mudei de ideia, não sei, desconfiei da seguinte. E não é tão frágil este momento de agora se daqui a pouco for pura incoerência? Um pé de vento não seria o bastante?

Um cachorro se põe a latir bem sério porque o vento lhe canta aos ouvidos como um uivar. O vento é como um convidado que chega aos poucos, cada vez mais gordo, pode engolir tudo, você sabe. Com a cara ferida e arranhada pelo dançar do ar em seus lisos cabelos, as hienas se assustam, se escondem nos banheiros. O velho desliga a música, recolhe o toldo, mas o redemoinho se afasta mais gordo e vai engolir apenas uns eucaliptos distantes. Que pena! Um pé de vento seria o bastante.

A música ruim então volta a tocar, os vasos sanitários regurgitam hienas ainda mais maquiadas, qualquer silêncio parece impossível, uma criança chora alto, ela sabe: um pé de vento seria o bastante e em Vauxhall nunca para de ventar.

2 comentários:

allegro ma non troppo disse...

gostei bastante desse texto.
O vento ta cada dia mais gordo - do nosso sopro.

Cassandra disse...

:) sim. Sopremos juntos.