Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Janelas

Se conto agora dessa garçonete é porque na época também eu era garçonete. O nome do restaurante anunciava que a vida era bela. Era um restaurante italiano com uma área para fumantes que se estendia do pequeno jardim de inverno dos fundos até a área coberta próxima aos banheiros onde ficavam as mesas maiores sempre reservadas por famílias que conversavam educadamente porque pensavam em dar exemplo aos seus filhos presentes já acostumados ao cigarro. Já a parte da frente do restaurante era adornada pelas janelas brancas e transparentes que seguravam vasos de flores baixas, vermelhas e rosas, tanto do lado de dentro, quanto do lado de fora. Ali ficavam as mesas para os casais que gostavam de ver a neve cair no inverno. 

Era sabido que a área das duas janelas do lado direito costumava receber casais que tomavam vinhos, comiam mexilhões e bebiam cafés aromatizados. Do outro lado, próximos às janelas esquerdas, estavam os velhos que gostavam de café tradicional e os amigos que se reuniam após o trabalho para beber cerveja. 

Para atender o lado direito então, escolhiam as garçonetes mais habilidosas, as que sabiam equilibrar bandejas cheias de cafés enfeitados e servir o vinho sem esparramá-lo nos forros brancos de tecido. Não era o meu caso. Eu atendia o lado esquerdo. Mas era o caso dessa garçonete de quem falo agora, que era magra, pequena, loira dos olhos azuis, tinha rugas recentes e ossos fortes para carregar até quatro pratos grandes e pesados, de porcelana italiana. Ela tinha apenas um dia de folga e trabalhava ali das nove da manhã às dez da noite. Eu só ia aos finais de semana.

Enquanto eu mal conseguia sustentar dois pratos e, certa vez, consegui derrubar um saleiro na cabeça de um cliente, ela era incansável de um lado para o outro, levando e trazendo sem erros, sorrindo apenas quando necessário. 

Naquela noite eu, do lado esquerdo, a observava do lado direito e quase enxergava seus minúsculos poros de galega excretarem a penugem orvalhada de suor que fazia seu rosto brilhar sob a luz amarela. Não falávamos a mesma língua, além disso, ela nunca era vista parada, estava sempre a girar com os pratos como uma bailarina que já vai passando da época de dançar. 

Eu era quem naquela noite, às vezes, permanecia estática, observando-a porque naquela manhã, pela primeira vez a vi olhado em meus olhos, e eu havia entrado em sua casa. Eu a enxerguei em sua casa minúscula: ela arrastava os móveis para limpar os centímetros. Depois, exausta, ela se sentava em frente à televisão e reclamava baixinho chiando da bobagem mundial. Depois ela ia até a geladeira, abria uma cerveja e acendia um cigarro. Olhava para o telefone sem gostar dele, olhava para janela rachada e mofada da cozinha e pensava que talvez gostasse de ter um filho. Telefonava. Dormia com um cara. Acordava no dia seguinte e, antes de ir para o restaurante passava em uma farmácia, comprava e tomava a pílula do dia seguinte. 

Às nove da manhã ela já tinha chegado ao restaurante para ajudar na limpeza e montagem das mesas para o almoço e, pela primeira vez eu a via parada, olhando para as janelas, pela primeira vez, depois de um ano trabalhando juntas, ela se virou e olhou no meu olho para comentar o tempo frio. Olhando em meus olhos deixou-me entrar em sua casa pela primeira e última vez. 

Depois daquele dia, ela nunca mais apareceu de novo. Enquanto a viam como uma garçonete, eu a via como uma bailarina incansável, que agora ia se cansando e, por isso, resolvia olhar para as janelas, e então, se aposentar por uns tempos.

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