Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

domingo, 8 de maio de 2011

Enquanto chovia

*Escrito por Alfredo



Essa menina muito minúscula apareceu certa vez em minha varanda. Sem asas e, também!, se fosse uma fada não seria uma das mais bonitas e usava um tênis velho. Se movimentava com dificuldade como se estivesse quebrada por dentro e tinha os olhos vidrados como se uma lesma tivesse deixado rastro sobre eles. Eu tentei, mas não consegui me importar.

Era meu jeito de me incomodar com sua presença, ficar em silêncio. Ela disse: então, o que achas? Era como se viesse de outra época, de outra dimensão, de outro país, no mínimo. Eu não sei o que acho, eu só acho mesmo. Ela gargalhou como se um pedaço de coisa engraçada lhe tivesse atingido a cara. Senti vontade de rir também, mas vi uma lágrima espirrar em meu olho como a inaugurar a chuva que depois caiu duas horas e vinte e três minutos.

Ela precisou ficar porque senão se molharia e era tão minúscula que poderia ser levada pela enxurrada. Não pude não me compadecer e a deixei sentar-se na palma da minha mão. Aproximando-a de meu rosto achei que seus olhos tinham o ranso duns muitos anos de vida e talvez ela fosse milenária, embora não tivesse asas e usasse tênis. Era bom cuidar de lhe ajeitar um agasalho com a minha camisa e assim eu a enrolei para que não sentisse frio. Ela se dobrou no formato, tamanho e peso de um coração que eu aparava com as duas mãos como se isso aquecesse ao meu próprio.

E primeiro contamos piadas e sorrimos. Depois contamos mistérios e nos arrepiamos. Depois contamos tristezas e nos sentimos valentes. Então ela se desvencilhou dos panos e passeou nua pelo meu peito sem camisa. Disse que cataria piolhos e se meteu em meus cabelos puxando os fios para se equilibrar, mas quando tentei alcançá-la apalpando minha cabeça, só pude sentir meus próprios dedos contra meu crânio. Os pés calçados de tênis não mais pesavam leves ou eu não os sentia mais pisar? Vasculhei as coisas em volta, e o que procuras? Ouvi a voz dela dizer: o que procuras? Procuro você, eu disse fechando os olhos como se sua voz estivesse dentro de minha cabeça.

A chuva parou de cair quando senti meu coração pesar. Foi como se a garota minúscula tivesse se cansado e resolvido se deitar ali. Então, ainda que eu fechasse os olhos, não conseguia mais ouvir sua voz milenar. Mas ouvia sua respiração e, por isso, sabia que ela só dormia. O que me causava espanto era que ela fosse do tamanho exato, coubesse ali, quem sabe não dormisse ali para sempre (!) imaginei-me no escritório, e seria só fechar os olhos... ... sua respiração, sua forma de meu coração, minúscula, imensa, do tamanho exato.

Nenhum comentário: