Existo. Ou não

Sou loira dos olhos negros. Inventada. Sou a personagem em mim que esteve atenta o tempo todo, a que guardou, quebrou, misturou e pintou essas histórias. Sem ela, eu simplesmente não aprendo. Não conseguiria. Eu posso ser outras pessoas, uma grande alegria na vida duns, uma grande tristeza na vida doutros, mas, se escrevo, sou Cassandra. Se não sou, digo a ela: Cassandra, que saco! E a gente sai por aí. Discutindo e tomando uns goles. E a gente se mistura. A gente se conforta. Em Uberlândia, minha Macondo, minha London, minha Paris. O Alfredo? É meu incidente, reincidente.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Lixo


Não é que eu me considere pouco persuasiva, o que acontece é que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar, naquilo que as façam sentir-se melhores e, se apanham uma maçã na árvore da serpente, me parece quase impossível dissuadi-las de concretizar a mordida. Vi minhas profecias  se concretizarem umas tantas vezes e me lembro daquelas discussões acaloradas em que minha humilde razão se calava e pedia outra cerveja para eu mesma entorpecer a sensação mediúnica de prever um futuro óbvio e ruim para alguém com quem eu me importava. Agora lá está, tudo como eu disse que estaria, quem me pedia para eu parar de fumar, agora fuma três maços, a quem eu pedi que parasse de fumar, agora vive embaixo dos tais sete palmos, de um jeito ou de outro. 

Quando eu me encontro com aquelas pessoas de outrora e comparo o rascunho do que poderia ter sido com o que é, me pergunto até que ponto não perdi completamente meu tempo entoando questionamentos que não surtiram qualquer efeito. Eu poderia ter lido mais livros com aquele tempo, pelo menos.  O mais certo é a lei do menor esforço, meter-se a si mesmo em qualquer coma que ajude a atravessar as horas da vida com menos peso, menor responsabilidade e chegar à hora derradeira com as mãos limpíssimas de Pôncio Pilates.

É assim como a nossa casa, nossas coisas, nossos dias, nossa vida, nossa doce ilusão. Não queremos lidar com o lixo, com os restos de comida que entopem o ralo da pia, com a poeira acumulada atrás dos móveis, com o limo formado no vaso. Começa por aí, então o nível de inconsciência toma a rua, a vizinhança, a cidade, o estado, o país, o mundo. O simples ato de levar o lixo até a lixeira não é coisa com a qual um presidente devesse se ocupar. As pessoas insistem na ideia de precisar de outras pessoas para limpar a sujeira que elas mesmas produzem, em considerar o ato de limpar uma coisa menor, sem valor, em fingir que o lixo evapora na lixeira ou que lixeiros são bonecos infláveis criados especialmente para nos livrar desse tipo de preocupação. 

Diz-se que o problema é a falta de tempo, mas os problemas são inúmeros, inúmeros e as soluções, incalculáveis quando se há sempre algo mais importante a ser calculado. Me pergunto se o cerne da questão não está simplesmente no preconceito aliado ao comodismo: desculpe-me mas não sei usar o esfregão, desculpe-me mas não sei cozinhar, desculpe-me mas não faço ideia de como passar uma camisa, desculpe-me mas tenho nojo e acho que vou vomitar. Não é que as pessoas que se contrate para realizar tais afazeres tenham realizado exatamente uma faculdade que ensinasse tais habilidades, ou tenham um estômago equipado com substâncias anti-ânsias. 

Ando às voltas com essas coisas e tento não acumular coisas atrás das quais se acumulem poeiras, o que é um tanto difícil, para não dizer impossível. De uns tempos para cá, enxergo essas pessoas de sempre como espécies de zumbis, mortas, entorpecidas, adormecidas, estranhas, bibelôs na estante da vida, milhares de pessoas feitas para enfeitar. O que tenho ultimamente é uma preguiça enorme de conversar. Como alguém que deixou de acreditar nas palavras que vêm acompanhadas de uma bela figura colorida. Afinal, não seria certo ilustrar uma deliciosa receita de pato ao molho de laranja com uma foto do lixo produzido na preparação, ou uma figura das fezes produzidas pelo corpo que se aproveitou dos bons nutrientes da receita e expulsou suas toxinas. Aliás, é de bom tom nem pensar sobre isso, melhor injetarmos em nós mesmos boas e velhas toxinas que nos paralisem os músculos, que nos congelem os sorrisos, nos misturarmos ao que não conseguimos combater, metermos nós mesmos a cabeça em nosso próprio lixo.

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